DES-TINO (TEATRO)
autor: Jean Pires de Azevedo
Gonçalves
jean.pag2014@gmail.com
Des-Tino
(ou
O desatino de Florisa)
2016
Personagens
Florisa,
uma estudante.
Caio,
marido de Florisa.
Mariana,
amiga de Florisa.
Lili,
mãe de Florisa.
Daniela,
amiga de Florisa.
Dylan,
jovem rebelde.
Tatiana,
namorada de Dylan.
Professora.
Jairo,
dono de um bar.
Julia,
amiga de infância de Florisa.
Dois
seguranças.
Um
colega.
Um
vigia.
PRÓLOGO
Respeitável público,
senhoras e senhores, a história que será apresentada a partir de agora, talvez,
não seja um primor de originalidade, por se tratar de mais uma história de
amor. E, muito embora este sentimento seja raro entre os humanos, em sua
essência o amor é bem vulgar. Portanto, se algumas passagens parecerem
familiares, peço compreensão e boa vontade, pois isso se deve ao fato
inexorável da vida sempre se repetir. Uma lei do Universo determina que tudo
volte ao mesmo lugar, para sempre. Por isso, se um dia o soturno Amor por um
acaso bater à porta, insano coração, abra – mas abra depressa! – para que a
tortura do arrependimento não o atormente, em lembranças, pela eternidade.
Quanto a mim, deixo minha apresentação pessoal para o final. Isso pode parecer
estranho a princípio, mas há uma explicação, que só terá sentido mesmo no
último ato. Por ora, minha participação, assaz discreta, fica restrita a este
prólogo, porém, conto-lhes uma novidade, estarei por perto o tempo todo,
escondido. Esperem. Silêncio! Ouço passos. Alguém está chegando!
PRIMEIRO ATO
Cena
1
Na sala de um espaçoso
apartamento. Entra dona Lia e Florisa.
Lili: Não está certo!
Não está certo! Isso não vai acabar bem.
Florisa: Mamãe!
Lili: Filha, você já
passou da idade de fazer faculdade.
Florisa: Mãe, eu tenho
que aproveitar esta oportunidade.
Lili: Mas, filha! Você
é uma mulher casada. Você tem que cuidar do seu marido. E não dar mais trabalho
a ele. Imagina, sair todo dia e voltar às 11 horas da noite! Se ainda você não
mudasse de horário.
Florisa: Eu não
aguentava mais estudar de manhã. Chegava atrasada todos os dias. E a faculdade
só tem dois horários, matutino e noturno.
Lili: Eu continuo
achando essa história um absurdo. No meu tempo, a gente dizia que mulher ia à
faculdade só para arrumar um bom marido. E um bom marido você já tem.
Florisa: Que coisa mais
retrógrada, mamãe!
Lili: Foi o meu caso.
Foi na faculdade que conheci seu pai, embora ele não passe de um traste. Só que
a diferença é que eu era uma mocinha de 17 anos e não uma mulher de quase
trinta. E, ainda por cima, casada.
Florisa: Eu e o Caio
nos damos muito bem, mamãe. Somos muito unidos. Todos os dias de manhã vamos à
academia juntos. Mas, depois, o Caio vai trabalhar e só volta de noite. Eu fico
muito tempo sozinha, em casa, entediada.
Não aguentava mais passar os dias assistindo televisão ou fofocando no
zapzap.
Lili: Você é uma dona
de casa. Certamente, tem muitos afazeres.
Florisa: Quais, mamãe?
A Leslie faz tudo.
Lili: Mas o Caio é um
rapaz bom, tão esforçado. Dar esse desgosto pra ele!
Florisa: Que desgosto?
Eu estou tão feliz. Estou conhecendo tantas coisas novas. Fiz novas amizades.
Por que tanta preocupação?!
Lili: O clima de
faculdade não é bom. Eu conheço muito bem, viu, queridinha! Muitas festas,
álcool, drogas e...
Florisa: “E” o quê?! Eu
não vou a festas. Eu só tenho amigas mulheres e os meus amigos homens, você
sabe, jogam no nosso time. Eu nem sei e nem quero saber onde fica o famoso
“fumódromo”. Minhas amigas são todas caretas. Todas patricinhas, como eu. Você
faz um juízo errado de mim, dona Lia.
Lili: Eu só acho essa
ideia estapafúrdia. E depois que você se formar? Vai trabalhar também? O Caio
ganha tão bem. Um empresário promissor. Nunca vai lhe faltar nada. Por que
arrumar problemas onde não têm.
Florisa: Eu quero ter
minha profissão. Vai saber o dia de amanhã. E se um dia a gente se separa?
Lili: Eu sabia! Eu
sabia! Você já está pensando em se separar. Na certa arrumou um namoradinho na
faculdade!
Florisa: Que absurdo,
mamãe! Eu tô muito feliz no meu casamento. Eu só disse isso porque a gente não
sabe o dia de amanhã.
Lili: Então é o Caio?
Ele está frio com você.
Florisa: Não é nada
disso. A relação está ótima. O Caio me trata muito bem, é um sonho. Eu só quero
me sentir um pouco útil, ter uma vida social. Eu conheci o Caio muito cedo.
Naquela época eu não pensava em estudar. Achava que o casamento bastava.
(Entra o Caio e beija
Florisa)
Caio: Olá, meninas!
Florisa: Oi amor.
Lili: Olá, Caio.
Caio: O que estavam
conversando? Espero que não falavam mal de mim.
Lili: Imagina!
Florisa: Mamãe estava
reclamando do meu curso na faculdade.
Caio: É dona Lili,
nossa garota resolveu virar uma intelectual.
Lili: É um pouquinho
tarde para isso, não é.
Caio: Eu não diria
tarde. Eu prefiro entender como um passatempo.
Florisa: Ai, que coisa
horrível!
Caio: Eu não quis
desmerecer seu curso, só acho que não é necessário.
Florisa: Puxa vida!
Vocês me tratam como uma criança. Será que não conseguem se colocar no meu
lugar? Este curso é muito importante para mim.
Independentemente se vou algum dia trabalhar ou não, não percebem como
estes questionamentos me magoam?
Caio: Desculpa, amor.
Não vou mais questionar. Eu só quero te ver feliz.
Florisa: Mamãe, o Caio
tem tantos hobbies, tantas atividades, seu dia está sempre tão cheio. E eu? Por
que eu não posso realizar um sonho?
Lili: Florisa, Florisa.
Você não é mais uma adolescente. Ouça a sua mãe. Deus deu maturidade primeiro
às mulheres, porque os homens precisam de seu apoio. Não seja você infantil.
[Saem]
Cena
2
Florisa, Daniela e
Mariana estão sentadas na primeira fila de carteiras da sala de aula aguardando
um professor.
Mariana: Florisa, como
foi o final de semana?
Florisa: Ah, foi
maravilhoso! Eu e o Caio tivemos um desentendimento por causa de uma discussão
que eu tive com minha mãe por conta da faculdade. Depois, então, para se
desculpar e comemorar nossa felicidade, ele me levou a um restaurante
maravilhoso nos Jardins. De repente, todos saíram e só ficamos nós dois no
restaurante. Só eu e ele! Então o Caio se levantou e foi tocar piano, um que
havia no meio do salão...
Mariana: Que romântico,
Florisa!
Daniela: Gente, olha só
quem entrou na sala...
Mariana: Não acredito!
Florisa: Quem é?
Daniela: Florisa, seja
discreta. Não olhe agora... Tá vendo um cara indo sentar no fundão. Mas, seja
bem discreta, dá uma disfarçadinha, e olha sem ele perceber.
Florisa olha.
Daniela: É o cara
fazendo tipinho de rebelde sem causa, meio James Dean, meio galã de boteco.
Florisa: Hã, sim. Eu o
vi passar hoje pelo corredor.
Daniela: Esse é o cara
mais treze da faculdade. Pensa num cara sem noção: é ele! Ele é totalmente
previsível: vai começar a assistir à aula hoje, vai sair antes de acabar e
depois vai passar o resto do semestre bebendo cerveja no Jairo.
Florisa: Ele é
engraçado. Olha a gola alta da jaqueta que ele usa, totalmente fora de moda. O
sujeito parece ter saído do tempo da brilhantina!
Daniela: Não olha
agora! Ele tá olhando pra cá.
(Risos discretos).
Daniela: Ele é bonito.
Mariana: Isso ele é,
sim.
Florisa olha de novo.
Florisa: Ai, não acho
não.
Daniela: Não acha?!
Florisa: Tá, ele tem a
sua graça. Mas o estilo dele, as roupas que ele veste, sei lá, eu não olharia
para um cara assim. Não faz meu tipo. Muito largadão.
Daniela: Claro, amiga.
Você é casada. Eu já pegaria ele fácil.
Mariana: Jamais
trocaria meu noivo por ele. Ele é total sem futuro. Agora, você, Daniela, tá na
vida louca...
Florisa: Como ele se
chama?
Daniela: Dylan.
Florisa: Tá explicado o
figurino. Deve ser mal de família.
Daniela: Ele faz
sucesso com as meninas.
Florisa: Só se for
mesmo com as hipongas.
Mariana: Gente, não
olhe agora, ele tá sorrindo pra gente.
Florisa: Ele tem um
dente quebrado?!
Mariana: Tem. Disse que
quebrou numa briga. Mas, eu não acredito, ele é muito loroteiro.
Florisa: Por que ele
não corrige isso?
Daniela: Florisa, é só
uma pontinha, não dá nem pra perceber! Não fica feio. Não seja maldosa!
Mariana: É charme.
[A professora entra e
começa a aula].
Cena
3
Florisa e Caio estão na
cama do quarto do casal.
Caio: O que foi, amor?
O que é que você tem?
Florisa: Nada, amor. Só
estou indisposta.
Caio: Aconteceu alguma
coisa?
Florisa: Não. Não
aconteceu nada. Só estou cansada.
Caio: Você sabe o que
vai fazer no fim de semana?
Florisa: Você tem que
ir mesmo?
Caio: Você sabe que
todo ano eu vou. É uma tradição.
Florisa: Mas não pode
mudar essa tradição. Pelo menos uma vez.
Caio: Você sabe que
meus amigos não me perdoariam. Nós fazemos esta viagem todo ano, desde quando
estávamos no colégio.
Florisa: Mas no
domingo, você ainda vai ao jogo e só volta de madrugada. Não vamos passar nem
um minuto juntos.
Caio: É só neste fim de
semana. Depois volta tudo ao normal.
Florisa: Não tem jeito
mesmo. Vou fazer o quê?
Caio: Por que você não
vai à casa de seus pais?
Florisa: Eu já marquei
com a Julia no shopping. Vamos assistir um cinema e colocar o assunto em dia.
Caio: Viu só! Faz muito
bem. Tá vendo, você tem as suas amigas, tem que ter seu espaço também.
Florisa: O problema é
que você não abre mão dos seus amigos. Já eu não tenho escolha.
Caio: Eu nunca impedi
você de manter contato com suas amigas. Pelo contrário. E além do mais, você
conhece muito bem meus amigos. São todos uns ogros! E o Robertão te adora.
Sempre quando dá ele te manda um presentinho. Lembra da caixa de bombons da
semana passada? Vai dizer que não gostou? Eles te adoram. Não se justifica o seu
ciúme.
Florisa: Eu não estou
com ciúmes. Eu confio em você.
Caio: Vamos fazer um
trato, então. Vamos reservar o outro final de semana só para nós dois. Eu vou
desligar meu celular e não vou atender ninguém. Nem meus fornecedores.
Florisa: Então fica combinado.
Caio: Já é tarde, vamos
dormir. Amanhã temos que chegar cedo na academia e tenho uns assuntos
importantes para tratar no escritório. Não posso me atrasar.
Florisa: Estou sem
sono.
Caio: Fecha os olhos e
não pense em nada.
Florisa: Vou tentar.
Caio: Boa noite.
Florisa: Tem um cara
muito estranho na faculdade.
Caio: É? Por quê?
Florisa: Não sei.
Imagina um cara que parece ter saído de um filme do tempo do Elvis Presley.
Caio: Sim. Tipo
“Juventude Transviada”.
Florisa: Isso mesmo!
Vestido todo paramentado daquele jeito, fazendo pose de garoto revoltado.
Caio: Bizarro.
Florisa: Ele passou por
mim e ficou me olhando de um jeito esquisito. Depois ficou encostado na entrada
da sala de aula fazendo cara de mau.
Caio: Que patético!
Florisa: As meninas
disseram que é um cara encostado, que vai para a faculdade só para enrolar,
passar o tempo, usando drogas.
Caio: Meu Deus! Isso
não muda! No meu tempo de faculdade tinha uns figuras assim. Um dia desses vi
um desses caras. O cara continua a mesma coisa. Não evoluiu nada. Vidinha
inútil.
Florisa: Não gosto do
olhar dele. Me dá medo.
Caio: Ele pode ser um
maníaco.
Florisa: Tenho medo.
Caio: Procure a
segurança, fale com a direção, deixa a guarda de sobreaviso.
Florisa: Acho que ainda
é cedo para tomar providência.
Caio: Qualquer coisa eu
dou um apavoro nesse cara.
Florisa: Não, ainda não
precisa. Mas fica de alerta.
Caio: Promete que você
não vai resolver isso sozinha?
Florisa: Cuida de mim,
amor!
Caio: Eu vou cuidar,
meu amor. Vou cuidar. Agora vamos dormir.
Florisa: Boa noite!
SEGUNDO ATO:
Cena
1
Em um shopping.
Julia: A gente tem que
dar o dízimo pra igreja para nossa vida prosperar materialmente.
Florisa: Você quer
dizer enriquecer.
Julia: Claro, sim, por
que não? Por exemplo, a lógica funciona mais ou menos assim: se você tem um
carro popular e ofertá-lo à igreja, em pouco tempo você terá uma Ferrari...
Florisa: Você ou o
bispo?
Julia: Ah! Florisa, não
se pode duvidar da palavra do Senhor.
Florisa: Qual palavra?
De que senhor? Quem diz essa palavra? Quem a interpreta? Desculpa, Julia, mas
esta igreja mas me parece um banco.
Julia: Está nas
escrituras. É preciso demonstrar obediência ao Senhor através de doações para a
igreja. De fato, é como se você emprestasse a Deus e recebesse depois em juros.
Florisa: Você fala de
Deus como se fosse um homem.
Julia: Deus fez o homem
sua imagem e semelhança.
Florisa: Eu quis dizer:
um chefe... de uma empresa, de uma transação comercial, de uma caixa
registradora...
Julia: É um chefe, sim,
e louvá-lo incondicionalmente enche-nos de benesses...
Florisa: Ou de
promoção? Penso diferente. Por que Deus, o Criador do Universo, iria cobrar
louvor incondicional de suas criaturas imperfeitas? Só para testá-las e
satisfazer sua vaidade? Ai, Julia, não posso aceitar que Deus seja tão mesquinho
a ponto de recompensar ou punir as pessoas apenas por causa de um capricho
narcisista e, daí, cobrar tributos pelo eterno reconhecimento de sua
superioridade. Isso não me parece algo digno de um ser superior. Para mim, o
mundo é uma dádiva e Deus é de natureza espiritual, não é nem masculino nem
feminino, não tem forma humana, e é tão perfeito que sequer podemos imaginá-lo,
compreendê-lo. Não consigo acreditar que um Ser tão grandioso se rebaixe ao que
há de pior nos seres humanos, o egocentrismo, a soberba, a futilidade, e,
assim, esperar, deles, homenagens de ordem material. Não faz sentido!
Julia: A obra do Senhor
é matéria também. Temos de amar a Deus sobre todas as coisas, e somente a Ele.
Se nos desviarmos da fé verdadeira, nossa vida perde a direção. Fé é se
despojar de tudo e entregar a nossa vida em Suas mãos. É preciso temer a Deus.
Florisa: E a nossa
responsabilidade? Nossa vontade? O nosso livre-arbítrio? Nossa capacidade de
decidir o que é o bom e o que é mal? Quer dizer que somos livres apenas para
escolher a Sua tutela ou receber o Seu castigo? Aceitando a Sua tutela, podemos
fazer o que bem entender, ainda que isso possa prejudicar outras pessoas? E os
nossos atos, nossos valores éticos? Isto não importa? Quer dizer que basta eu
temê-Lo e pronto? Agindo assim, estou agindo por medo e não por convicção. Não
é algo que vem de dentro de mim, mas de fora e, portanto, não é sincero. Faço
isso de caso pensado, com base em uma relação interesseira, para receber algo
em troca. Fazer o bem por obrigação ou só porque me é vantajoso não é fazer o
bem, Julia. E amar, por dever ou por medo, não é amor. Eu tenho por princípio
que Deus é bom. E se é bom, é generoso. Para mim, a única coisa que Deus exige
de nós é que sejamos realmente bons, solidários e amemos uns aos outros. Então,
se Deus julga, julga as atitudes. E crer ou não em sua existência não é
parâmetro de caráter de ninguém. Na minha opinião, um ateu honesto e justo tem
melhor reputação aos olhos de Deus do que um religioso inescrupuloso. Já vi muito
gente agir de má-fé em nome de alguma religião. Realmente, Deus espera muito
mais de nós do que o dízimo. Espera integridade. E isso não é palpável, não se
prova por meio de coisas materiais. Além disso, um Deus que divide, que
segrega, para mim, não é um Deus bom não. A maldade está nos seres humanos e
não em Deus. É nisso que eu acredito.
Julia: Louva-Lo
significa seguir as suas leis.
Florisa: Quem segue,
Julia, de verdade? Quem segue?! Se seguissem, o mundo não seria este caos,
cheio de guerras e corrupção. Escuto muito discurso e pouca ação. Não suporto
maniqueísmo nem hipocrisia!
Julia: Se todos
louvassem...
Florisa: Chega! Não
queira medir a fé das pessoas. Encontrar culpados. Este argumento é muito
finalista, isto é, avalia as pessoas pelos resultados, não por suas atitudes.
Como se a vida não fosse cheia de contingências...
Julia: Você diz isso
porque o Caio é bem sucedido, é abençoado.
Florisa: Isso não tem
nada a ver com merecimento. É trabalho duro, Julia.
Julia: Deixa pra lá! E
ele, como ele está?
Florisa: Está bem. Foi
viajar com os amigos. É uma viagem que ele faz desde criança.
Julia: Vocês quase não
passam o tempo juntos, não é.
Florisa: Claro que
passamos! Quem te falou isso?! Vamos à academia todos os dias juntos. Passamos
os finais de semana juntos. Claro, quando tem jogo ele sai, mas é só em final
de campeonato. Ah, e, na sexta-feira, ele joga bola com os amigos depois do
trabalho, mas volta sempre antes das 11 da noite. Antigamente, eu não gostava.
Mas, depois que entrei na faculdade, percebi que ele tinha que ter o espaço
dele, seus momentos com os amigos, assim como eu também tenho. Senão não há
quem aguente, o relacionamento não dura.
Julia: O Caio é tão
especial.
Florisa: Ah, e você?!
Está namorando firme aquele fulano que você conheceu na igreja? Como é o nome
dele mesmo?
Julia: Josias. Estamos
pensando em nos casar em breve.
Florisa: Nossa, Julia,
que notícia maravilhosa! Me conta mais...
[Entram na sala de
cinema]
Cena
2
Prédio da Faculdade.
Entra Dylan. Florisa o espera.
Florisa: Escuta aqui
rapaz, eu quero falar com você.
Dylan: Às suas ordens,
moça.
Florisa pega-o pelo
braço e leva-o a um lugar mais reservado.
Florisa: Eu sou uma
mulher casada, o que que você está querendo?
Dylan: Você que pregou
os olhos em mim. Não está lembrada?
Florisa: O que que você
disse, moleque?! Olha pra você? Se enxerga, seu moleque!
Dylan: Acho que está
havendo um mal entendido...
Dylan começa a ficar
ofegante.
Florisa: Mal
entendido?! Eu não posso entrar na sala de aula e já me sinto perseguida pelo seu
olhar. Não posso andar pelos corredores que parece que estou sendo vigiada...
Dylan: Quando eu vi a
aliança no seu dedo, eu parei de olhar.
Florisa: Não parou não.
Dylan: Eu não quero
estragar seu casamento...
Florisa: Quem você
pensa que é para estragar meu casamento? Eu nunca me rebaixaria a um tipo como
você. Não sou como estas hippies que você conhece. Se toca, você é muito
presunçoso, moleque!
Dylan: Eu não estou
conseguindo me explicar... Você entendeu tudo errado...
Florisa: Eu entendi
muito bem. Quero que você me deixe em paz. Não quero você perto de mim. Quero
que você fique bem longe! Entendeu?!
Dylan fica cada vez
mais ofegante.
Dylan: Espere. Não
consigo respirar... Estou passando mal...
Florisa pega nas mãos
de Dylan.
Florisa: O que que você
tem garoto?
Dylan: Não sei.
Florisa: O que você
está sentindo?
Dylan: Eu estou
nervoso.
Florisa: Não precisa
ficar assim. É só uma conversa.
Dylan: Tudo bem.
Desculpa. Eu vou fazer o que você me pede.
Florisa: Não me leve a
mal. Eu sou uma mulher casada. Amo meu marido. Meu casamento está ótimo.
Dylan: Eu sou um
aventureiro inconsequente. Mas não quero prejudicar ninguém.
Florisa: Procure
encontrar outra mulher, que seja mais o seu tipo.
Dylan: Há um grande mal
entendido...
Florisa: Que mal
entendido?
Dylan: Eu tô namorando
a Tati.
Florisa solta as mãos
de Dylan, bruscamente.
Florisa: Que Tati?
Dylan: A Tati. Você não
viu uma garota ao meu lado na sala de aula? Você não viu?
Florisa: Não, não vi.
Os dois ficam em
silêncio.
Florisa: Bom, então,
acho que não há mais... nada... pra a gente conversar. Peço desculpa se fui
ríspida com você.
Dylan: Tudo bem. Eu não
levo a mal.
Florisa: Você está
melhor?
Dylan: Sim. Não conte
isso a ninguém, por favor.
Florisa: Você também,
não diga nada. Esquece que essa conversa existiu.
[Saem]
Cena
3
Na sala de aula.
Professora: Apesar do
livro se chamar Anna Karenina, o que nos induz a pensar numa narrativa que
verse sobre uma personagem feminina tão somente, há, no livro, outra história
paralela, que se desenrola em um nível mais profundo, com alguns pontos de
intersecção com o enredo central situado na superfície, e que é tão importante
ou mais que a história da personagem que intitula a obra. Trata-se da vida de
Nicolai Dmitrievitch Lievin. De fato, seu nome poderia ser um subtítulo ou até
mesmo o título oculto do livro e, à medida que avançamos a leitura do romance,
tal personagem masculino vai ganhando relevo, assim como, em termos
metafóricos, gravuras planas e abstratas que vão adquirindo profundidade e
forma conforme a vista vai perdendo a perspectiva. Na lógica interna do
romance, Lievin é a sombra de Anna e sua presença aparece como o negativo dela,
para intestinamente emergir e desconstruir a temática que transita em primeiro
plano, fato que nos faz questionar se não é ele o verdadeiro protagonista do
romance. Pode ser até um pouco arriscado o que eu vou dizer. Mas Lievin poderia
ser perfeitamente bem o alter-ego do próprio autor, Leon Tolstói. Como eu
disse, Lievin é o contraponto de Anna Karenina. Sua antítese. Suas trajetórias
partem de pontos opostos, cruzam-se, e se distanciam em direções contrárias. De
passado dissoluto, Lievin se regenera; enquanto Anna, uma mulher casada, ao
contrário, se degenera. Este é o mote do romance. Normalmente, lemos as
epígrafes dos livros quase como um adorno, um capricho do autor. Peço a vocês,
encarecidamente, para não cometer esse equívoco. A epígrafe de “Anna Karenina”
nos é bem reveladora, quase uma profecia. Escreve Tolstói (deixa eu ler aqui
para vocês): “Minha é a vingança, e a recompensa” (Deuteronômio, XXVII, 35). Ou
seja, esta sentença terrível pode resumir toda a minha arguição. Também não é
por mero acaso a citação extraída dos textos bíblicos. Há um panorama religioso
de fundo pelo qual darei ensejo à minha interpretação. Anna Karenina é casada,
mas Tolstói não esconde o quanto o conde Alexei Alexandrovich Karenin, esposo
de Anna, é um homem terrível, frio, insensível, indiferente, egoísta,
orgulhoso, péssimo pai, mais preocupado com a honra e carreira do que qualquer
outra coisa etc., etc., etc. Todavia, a princípio, Anna fez um voto sagrado com
este homem, o do matrimônio, e como tal deve se manter virtuosa. Virtude, sim,
do latim uir ou vir, daí viril, homem, o que implica dizer: privar-se da
feminilidade. Pois, na tradição religiosa, judaico-cristã, patriarcal, a mulher
carrega em seu âmago o germe da transgressão ao desobedecer à única interdição
no Gênesis: o conhecimento. De certo modo, conhecer é amadurecer, emancipar e,
principalmente, libido. Segundo a tradição, é a mulher quem toma a iniciativa e
conspira contra a ordem divina no Éden. Ou seja, a liberdade feminina é um
perigoso fator desestruturante das relações hierárquicas. Nas sociedades
arcaicas, a função da mulher se restringe à procriação, e daí um sistema de
controle e vigilância sobre sua conduta que constitui o núcleo de toda uma
política de estabilização social em torno do pátrio poder. As mulheres são
arroladas entre os bens do clã patrilinear, enquanto propriedade, e devem
reconhecer de modo irrestrito a autoridade paterna. O que supõe a menoridade da
mulher, suscitada pelo hábito no qual se idealiza uma essência feminina
associada a instintos sexuais e, portanto, irracionais, legitimando assim uma
cultura repressiva e de heteronomia sobre suas ações, isto é, quando a vontade
é regulada por normas exteriores e definida por terceiros. Evidentemente, este
ideário não tem nenhum fundamento empírico, mas é tão somente o reflexo de um
tipo de organização social e de relações de poder. Aqui saímos do campo da sociologia
para entrar na metafísica, pois a substância masculina é identificada
diretamente com o ser divino. Deus é pai, não mãe. Em contrapartida, a mulher é
mãe de todas as revoluções. A emancipação da mulher, ou melhor, o protagonismo
feminino é um fenômeno típico das sociedades moderna e urbana ocidentais. O
casamento de Anna e Karenin, por convenção e contaminado pelos valores da
civilização, insere-se nesse contexto moderno, ao qual poderíamos chamar,
fazendo uma analogia à ciência jurídica de seiva cristã, de teoria do princípio
dos frutos da árvore envenenada. Isto é, os valores morais intoxicados pela
civilização ocidental se tornam paulatinamente universais e irreversíveis.
Portanto, nem Anna nem Karenin representam o ideal de indivíduo proposto por
Tolstói, que é o da simplicidade natural, digamos, rousseauniana. O cenário dos
salões, festas e das reuniões em sociedade, que permeiam todo o romance, é a
manifestação de uma era afeminada que se vislumbra no horizonte, no sentido de
que o feminino é desagregador das origens. A feminilidade ameaça o status quo
através de uma guerra pela autonomia sobre o amor. Deste modo, a paixão é a
própria maçã da árvore do conhecimento que, inexplicável e maliciosamente, está
localizada no meio do Paraíso para induzir inevitavelmente ao erro, à tentação.
E, assim como toda a sociedade moderna, Anna também se deixa seduzir pelos
valores infectados, exógenos, antinaturais, porque tudo em sua vida pregressa é
artificial, leviano e falso. Neste sentido, o corolário da civilização burguesa
é a hipocrisia e, por conseguinte, a paixão de Anna, eivada por todas as
mazelas desse universo cultural, paixão por um rapaz jovem e bonito, que também
a ama verdadeiramente, não pode escapar do destino e do castigo daqueles que se
desviam das supostas leis naturais e divinas. Não vou contar o final da
história, porque sei que muitos de vocês ainda não terminaram de ler, mas não
pensem vocês que o Conde Alexei Kirillovich Vronsky, o jovem galanteador, por
quem Anna se apaixona perdidamente, é um cafajeste que em algum momento pensa
em abandoná-la. Tosltói não nos dá esse gostinho para aplacar nossa ânsia por
justificações. Gente, acreditem em mim, Vronsky é o sonho de qualquer mulher!
Portanto, não é a rejeição de Vronsky que leva Anna à ruína; mas, sim, a culpa
que a domina em seu íntimo, até tomá-la por inteira. Culpa que não apenas advém
do adultério, por se separar do marido, por violar as leis do matrimônio, ainda
que sem amor, mas, sim, pelos erros de toda uma geração. Culpa que a arrasta em
uma correnteza invencível às raias da loucura. Eis a vingança! Agora, vamos à
recompensa. Lievin, ao contrário, é um homem pertencente à aristocracia rural,
tem 32 anos, é bastante vivido e maduro – tendo por base os padrões da época –
e de juventude libertina na cidade, como todos os homens, mas que se redime
através do retorno à vida do campo e no casamento com uma mocinha, a princesa
Ekaterina Alexandrovna Shcherbatskaya, a Kitty, muito mais jovem do que ele,
uma carola. Por fim, Lievin, antes ateu, convence-se, no final do livro, da
existência de Deus; fato que lhe enche a vida de sentido. Curiosamente, a
futura esposa de Lievin, a Kitty, no início do livro, era caidinha pelo amante
de Anna, o Vronsky. Claro, né, gente! Lievin não suporta isso. Mas, claro, como
eles são do “bem” (entre aspas), Kitty acaba por descobrir um grande amor pelo
marido em sua convivência com ele – gente, ponham um entre aspas enfático nesse
amor também, porque eu não me convenci: apesar de ter só 18 anos, pasmem, Kitty
tem pavor de ficar para titia, tendo em vista os padrões morais da época.
Enfim, Kitty acaba por amar um esposo que não escolheu e que não é fruto de uma
paixão à primeira vista! Portanto, Kitty tem algo em comum com Lievin. Ela
também se regenera. (Gente, ressaltando, ela só tem 18 anos!). Ela também era
leviana, contagiada pelos ares sensuais da civilização urbana. Ao ser preterida
por Vronsky, Kitty adoece e é internada em um sanatório, onde trava contato com
uma devota, algo que a faz mudar completamente de vida. Mas a sua transformação
só se dará efetivamente com o casamento com Lievin. Do nada ela se revela.
Torna-se uma mulher forte, determinada, resoluta, apaixonada, fiel, leal,
amiga, companheira, boa esposa, submissa
[sublinhem este “submissa”]... Gente, dá até raiva! Ela, que é uma adolescente,
aparece muito mais “madura” (aspas aí!) do que Anna, que, apesar de aparentar
uns 20, devia estar perto dos trinta, pois seu filho único tem oito anos. No
fundo, para mim, Tolstói condena o único amor verdadeiro do romance, fruto de
espontânea e verdadeira paixão, que é o amor de Anna e Vronsky. Porque Anna e
Vronsky estão mais para Romeu e Julieta do que qualquer outro casal da
história. Ambos desafiam as convenções sociais por amor, renunciam tudo e tem de
superar os obstáculos de um amor proibido. Inclusive, por isso, Anna, ao
resolver assumir seu romance com Vronsky, é banida dos círculos aristocráticos.
Mas, muito cuidado, gente, não é o amor romântico. É o amor que existe na vida
real, que pode acontecer com qualquer um de nós, afinal, trata-se da escola
realista. Quanto aos outros casais, diga-se, de passagem, todos os
relacionamentos são marcados pela hipocrisia e traições. E apesar da hipocrisia
causar um terrível mal estar em Tolstói, que é um crítico ferrenho da sociedade
de sua época, todos os hipócritas passam impunes no romance. Somente Anna e
Vronsky pagam por se amarem verdadeiramente. Pagam porque ainda tem um pingo de
dignidade que falta aos outros personagens. Portanto, Tolstói é profundamente
severo e moralista. A crítica que ele faz da sociedade moderna é
contrabalanceada pelas comunidades arcaicas russas, tidas como ideal: um
idílio, o paraíso perdido. E daí um projeto nacional, agrário, de cunho
eslavista, oriental, antiliberal, representado por Lievin, e que permeia todo o
livro em passagens extremamente monótonas e enfadonhas que faz a gente gritar:
onde estão Anna e Vronsky! Ai, gente,
vocês me desculpem pelo que eu vou falar agora. Lievin até é um personagem
interessante no início, mas depois vai se tornando um chato. Consegue ser mais
maçante que Karenin. Sabem aquele cara pedante, cheio dos não-me-toque, que
fica do alto de um pedestal medindo com uma régua o que é certo e o que é
errado, como se o mundo girasse em torno dele? Bom, esse é o Lievin. Mas, é
exatamente isto, Anna e Vronsky representam o mundo ocidental, a modernidade
volátil, superficial, instável, sensual, movediça e vazia. Ambos se corromperam
por causa dela. Por afastarem-se do ideal de caráter e da essência do povo russo.
Neste ponto, apesar do conservadorismo, Tolstói pode ser enquadrado como um
revolucionário, se o pensarmos como um representante de uma vertente
aristocrática e conservadora do populismo russo, e não raro ele é considerado,
com muitas reservas, um anarquista, ou melhor, um anarco-cristão...
Florisa: Professora!
Professora: Sim.
Florisa: A gente pode
dizer que Anna Karenina se apaixona por Vronsky porque Karenin é um homem mais
velho e por isso...
Professora: Não, não é
só isso. Como eu disse, Tolstói é um crítico da sociedade ocidental burguesa.
Certamente, ele detesta Alexei. Alexei é o nobre que abdica dos ideais de
nobreza para se tornar um burocrata a serviço de um Estado absolutista
abominável, que é o czarismo. Tolstói é contra o Estado de um modo geral.
Certamente, não nutre simpatia por Karenin. Mas, sem dúvida, Alexei é um
personagem extremamente complexo, muito bem construído; ele é vazio por dentro,
totalmente desumanizado. Gente, é impagável a reação de Karenin quando recebe a
notícia da boca da própria Anna de que está sendo traído por ela. Ele explode
por dentro, mas não mexe um músculo da face. Sua primeira atitude é de não
tornar público o adultério. Depois chega a permitir, após meditações muito
ponderadas, que Anna e Vronsky mantenham o relacionamento, desde que escondido.
Ou seja, ele está mais preocupado com a fachada de seu casamento, pensando na
carreira, na sua posição social. Continua trabalhando normalmente, ambicioso
que é. Há momentos em que ele é extremamente sádico, pois cabe a ele conceder a
separação a Anna. Não. Alexei não pode ser um autêntico russo, abjeto que é.
Não para Tolstói. Não é uma pessoa; é uma coisa, uma função. Russo é Lievin.
Este, sim, é o grande herói do livro. Anna se apaixona por Vronsky, porque, em
primeiro lugar, ele é apaixonável, assim como as ilusões do mundo moderno, e,
em segundo, porque está ligada a um homem detestável, embora um cumpridor das
leis e dos valores religiosos. E, como nele tudo é falso, Ana quer quebrar as
leis. Quer ser livre. Quer amar. Ana é uma rebelde, em sua interioridade, em
seu íntimo, aos moldes de uma personagem feminina de um romance francês, de
Balzac, por exemplo. Na crítica romântica de Balzac, pré-realista, é o dinheiro
que está por trás de tudo. Para o realismo de Tolstói, é toda a civilização
ocidental. Por isso, Alexei é um burocrata detestável, mas tem uma carreira
regular e ascendente. Ontem, como hoje, seria um bom partido para muitas
alpinistas sociais. Gente, desculpem-me o eufemismo. Então, não é porque ele é
mais velho. É porque, para Tolstói, tudo está errado na sociedade russa que
corrompe a sua origem – cristã ortodoxa. Anna e Vronsly também são curvas fora
da reta. Mas, para o desespero de Tolstói, foi Anna que se consagrou e não
Lievin. O modelo vencedor foi o de Anna. Para terminar, no nosso mundo
contemporâneo, depois de toda a revolução sexual, do comportamento, da
liberdade e igualdade de gênero, talvez, para nós, principalmente nós mulheres,
seja muito difícil simpatizar com o moralismo de Tolstói. Porém, não podemos
esquecer que “Anna Karenina” é uma obra-prima da literatura universal, leitura
indispensável. Esteticamente, o livro é perfeito. Gente, para a próxima aula,
terminem a leitura, por favor, para entrarmos no tema seguinte que já deixei na
pasta do xerox. Obrigada e boa noite!
[Alunos e professora
saem].
TERCEIRO ATO
Cena 1
No apartamento de Caio
e Florisa.
Caio: Amor, eu estava
planejando e pensei que nas férias nós poderíamos viajar para Miami.
Florisa: Mas, môr, a
gente já não foi para Miami em janeiro? Por que não vamos para um lugar diferente,
algum lugar exótico na Europa, ou outro lugar. Que tal Índia ou um país da
África, devem ser lugares lindos... América Latina?!
Caio: Meu amor! América
Latina? África, Ásia...? O que que a
gente vai fazer na América Latina que a gente não vê aqui? Nada contra nossos
hermanos, mas o que eles têm para nos oferecer?
Florisa: Matchu Pitchu.
Que tal irmos para Matchu Pitchu?
Caio: Ah, não! Ruínas
de novo, não! Que os arqueólogos façam um bom proveito delas. Lembra-se no
Egito, aquele monte de pedras empilhadas. Nem se compara às torres de Dubai,
convenhamos, amor!... O mundo evoluiu.
Florisa: Eu adorei as
pirâmides...
Caio: Pensa bem. Em
Miami nós podemos voltar carregados de compras!
Florisa: Sim, mas,
amorzinho?
Caio: Lá eu me sinto em
casa. É como se fosse meu segundo país.
Florisa: Se você
insiste tanto. A palavra final sempre acaba sendo a sua mesmo.
Caio: Não é isso, amor.
É que eu tô pensando de modo racional. Unindo o útil ao agradável.
Florisa: Sim, mas...
Caio: Estes lugares
exóticos e muito pobres são interessantes. Mas, você sabe, para passar de
longe, em um trenzinho, dando tchau.
Florisa: Mas, nosso
país também não é rico.
Caio: Mas nós somos.
Ah, amor, não vamos discutir isso agora. Vamos para Miami, vai?! Mas, agora,
vamos para o quarto eu vou te contar um segredinho...
[Saem].
Cena
2
Na sala de aula.
Professora: Vejam só,
Nietzsche era um leitor de Dostoievski...
Dylan e Tatiana
conversam ao fundo.
Tatiana: Dylan, o que
você acha de irmos para a minha casa depois da aula?
Dylan: E fazer o que
lá?
Tatiana: Assistir um
filme, pedir uma pizza.
Professora:
...entretanto, a proposta de Dostoievski era diametralmente oposta à filosofia
de Nietzsche, só que Nietzsche não sabia...
Dylan: Tô dentro!
Tatiana: Que filme você
quer assistir?
Dylan: Tati, eu não sou
muito ligado em filme não. Pode ser qualquer um. O que você quiser eu assisto.
Professora: ...quando
Nietzsche descobriu que Dostoievski fazia uma literatura que em certa medida
era o contrário da transfiguração de todos os valores de sua filosofia,
Nietzsche ainda assim reconheceu a importância de Dostoievski...
Tatiana: Tive uma ideia
melhor. Eu posso preparar pra você um macarrão al pesto, que é a minha
especialidade.
Dylan: Opa! Bacana.
Tatiana: Sabe como eu
faço? Eu pego o manjericão, bato no liquidificador com muito azeite, depois
coloco algumas nozes – pode ser amêndoas também! – depois jogo parmesão...
Dylan: E amendoim?
Tatiana: Amendoim não.
Dylan: Poxa, gosto
tanto de amendoim.
Tatiana: O macarrão tem
que ficar al dente. Sabe como se faz macarrão al dente?
Dylan: Não, como se
faz?
(...)
Florisa: Mariana, a voz
dessa menina tá me irritando.
Mariana: E o pior é que
ela já fez esta disciplina. Ela só está na sala por causa do Dylan...
Professora: ...imaginem
um escritor super conservador como Dostoievski ser condenado à pena de morte...
Tatiana: Se faz assim:
você pega o macarrão, espera a água ferver, põe o macarrão na panela – não
espere dar os dez minutos! – você tira apenas um fio de macarrão e dá uma
mordidinha, se tiver um pontinho branco no meio é porque o macarrão está al
dente.
Dylan: É por isso que
chama al dente?
Tatiana: Não sei. Acho
que é...
(...)
Florisa: Não estou
aguentando mais. Esta menina não tem o menor respeito.
Mariana: Deixa os dois.
Professora: ...
Dostoievski seria enforcado, que loucura para nós, perderíamos este gênio da
literatura...
Florisa: Ô garota! Você
quer fazer o favor de ficar em silêncio!
Mariana (à parte, para
Florisa): O que você tá fazendo, Florisa?
Tatiana: Você está
falando comigo?
Florisa: Não! Estou
falando com quem? Claro que é com você! Tem alguma outra pessoa na sala
perturbando a aula além de você? Fica esse mimimi o tempo todo aí atrás. Você
não tem educação não, garota?
Professora: O que está
acontecendo?
Florisa: Essa menina
que não para de falar lá atrás.
Professora: Algum
problema?
Dylan: Não, prófi, é
que eu não vim na semana passada e ela tá me passando a matéria.
Professora: Se você
tiver alguma dúvida, pergunta para mim. Eu sou a professora. Não tenha vergonha
de perguntar. Porque mesmo que eu volte ao tema anterior, todo mundo acaba
aproveitando.
Mariana: Professora,
ela não está matriculada na sua disciplina.
Professora: Gente, quem
não faz esta disciplina, por favor, eu peço que não atrapalhe a aula. Mocinha,
eu vou ter que pedir para você se retirar da sala de aula. Peço sua
compreensão. Com um professor já é difícil, imagina com dois. Por favor.
Tatiana se retira.
Professora: Bom,
voltemos à aula... Onde eu havia parado mesmo?
(...)
A aula termina. Os
alunos saem da sala.
Daniela: O Dylan tá
esperando na porta.
Florisa: Ah, se ele
vier...
Dylan: Por que você fez
isso?
Florisa: Fez o quê,
moleque?
Dylan: Não precisava.
Florisa: Se você não
está interessado na aula, acorda! outras pessoas à sua volta podem estar. Será
que você ainda não notou que não existe só você e a sua namoradinha no mundo?
Dylan: Você é
intragável.
Florisa: Sua opinião
não me interessa nem um pouquinho.
Dylan se retira.
Florisa: Ele me chamou
de intragável. Eu?! Intragável!
Mariana: Não liga,
Florisa. Esquece essa história.
Cena
3
Florisa e Caio no
quarto.
Caio: Vou acender um
baseado. Quer dar um pega, amor?
Florisa: Você não vai
acreditar no que aconteceu na aula hoje.
Caio: O quê?
Florisa: Aquele cara de
novo.
Caio: Aposto que este
otário deve ser esquerdista.
Florisa: O cara não tem
a mínima consideração para com os outros. Ficou o tempo todo atrapalhando a
aula.
Caio: Nem o conheço e
já estou ficando com raiva desse cara. Quer um trago?
Florisa: Não, obrigada.
Depois, no final da aula, o cara teve a pachorra de me chamar de intragável.
Pode? Eu, intragável?
Caio: Você é tudo,
querida, menos intragável.
Florisa: Que ódio!
Caio: Vou dar porrada
nesse cara, amor. Me fala onde eu o encontro que eu vou encher a cara dele de
porrada.
Florisa: Ah, eu vou com
você! Vou te ajudar, também. Não gosto de violência. Mas este cara está
passando dos limites, merece, sim, uma lição.
Caio: Meu, eu tô muito
afiado no jiu jitsu. Tô doido pra estrunchar um maluco desse.
Florisa: Chega de falar
em coisas ruins. Vamos falar em coisas boas. Amor, você já tá preparando as
malas para nossa viagem de férias? Miami!
Caio: Eu sabia que você
ia se convencer.
Florisa: Vamos dormir,
amor, amanhã acordamos cedo.
Caio: Ótima ideia.
Amanhã vou extravasar toda a minha raiva no saco de pancadas. E adivinha em
quem eu vou estar pensando?
Florisa: Eu também. Vou
pedir uma aula especial para o professor de muay thai. Uns golpes novos.
[Dormem]
Cena
4
Dia seguinte, à tarde.
Tatiana e Dylan estão sentados no banco de uma praça dentro do campus.
Dylan: Tá vendo estas
formigas andando em fila, Tati?
Tatiana: Elas carregam
umas folhas muito maiores do que ela.
Dylan: Está vendo uma
mulher andando lá longe com uma mochila nas costas?
Tatiana: Estou.
Dylan: E um homem
passando agora...
Tatiana: Sim.
Dylan: Qual a diferença
dessas formigas daquelas pessoas.
Tatiana: Acho que
muitas.
Dylan: Não. Nenhuma.
Não tem diferença.
Tatiana: É pensando
bem...
Dylan: Quando sairmos
daqui, é preciso tomar cuidado para não pisarmos nelas.
Tatiana: Nas formigas?
Dylan: Sim. Imagina um
meteoro vindo de encontro da Terra. É a mesma coisa. De uma perspectiva solar,
o que acontece à humanidade é totalmente indiferente ao Sol.
Entra Florisa.
Florisa: Ah, quer dizer
que os dois pombinhos resolveram namorar em um lugar mais apropriado.
Dylan: Faça um favor.
Dá licença. Vai embora daqui.
Florisa: Não vou não. A
praça é pública e eu fico onde eu bem entender. Quem sabe assim da próxima vez
os dois se tocam e não resolvam incomodar ninguém na sala de aula.
Tatiana: Você é louca,
garota.
Florisa: “Você é louca,
garota”! E você? O que você é, para ficar com um cara desses? Só pode ser uma
tapada.
Dylan: Mais respeito.
Eu não te dei liberdade...
Florisa: Você não me dá
nada, moleque!
Tatiana: Sabe o que
você é? Você é uma frustrada.
Florisa: Frustrada, eu?
Tatiana: É. Mal amada!
Florisa: Não me faça
rir. Me poupe, garota. Sou muito mais mulher que você!
Dylan: Por favor, não briguem
por minha causa.
Florisa: Ah, meu Deus!
Acho que vim parar num hospício!
Tatiana: Vai embora. A
gente não fez nada pra você.
Florisa: Frustrada é
você. Que não consegue arrumar um homem de verdade.
Dylan: Devo entender
isso como uma ofensa, Tati?
Tatiana: Nada. Ela tá
com inveja da gente.
Florisa: Será que eu
ouvi esse disparate? Escuta aqui, coisinha...
Dylan: ...“Será que”
não tem outra maneira de resolver essa treta?
Florisa: Não. Não tem.
Dylan: Então, dá para
você ir um pouquinho mais para lá? Você tá quase pisando na fila das formigas.
Florisa: Ah, é verdade!
Pelos menos tem alguém trabalhando aqui.
Tatiana: Moça, por
favor! Vai embora.
Florisa: Não se
preocupe, mocinha, eu já perdi tempo demais aqui com vocês dois. Sabe, eu tenho
mais o que fazer. Enquanto uns ficam aí, perdidos no mundo, esperando a vida
passar, eu vou à biblioteca estudar, porque, não sei se vocês notaram, isto
daqui é uma universidade, e não um parque de diversão.
Dylan: Ninguém te
perguntou nada.
Florisa: Tchau mesmo! E
você, garotinha, faça bom proveito desse maloqueiro que você arrumou para se
amancebar, se é que isso daí tem algum proveito. Caridade se faz a quem precisa
de verdade.
Dylan: “Para se
amancebar”. Caramba, há quanto tempo eu não ouvia essa palavra!
Tatiana: Não liga,
Dylan, ela é uma recalcada.
Florisa: Que pena de
você, menina, tão novinha e tão desmiolada.
Florisa sai.
Dylan: Enquanto uns
ficam aí, perdidos no mundo... eu vou à luta, na biblioteca estudar! Que
comédia!
Tati: Para de dar risada,
Dylan!
Dylan: Ei, você!
Florisa olha.
Dylan: Patricinha
babaca!
Florisa faz um gesto
obsceno e se retira.
Tatiana: Ai, que
ridícula.
Dylan: Doida de pedra!
Tatiana: Affê!!!
QUARTO ATO
Cena
1
Sala de aula.
Daniela: Eu acho melhor
marcar a reunião meia hora antes da aula.
Mariana: Na quinta, às
7 horas?
Daniela: Eu não vou
conseguir chegar antes. A gente conversa, divide as partes que cada uma vai
fazer e depois a gente se encontra para juntar tudo.
Mariana: Dá para você,
Florisa? Quinta, às 7 horas?
Florisa: Hã... dá...
Mariana: Mas como vai
ser a divisão?
Daniela: Cada uma pega
um texto, lê, ficha e depois costura tudo.
Mariana: Tipo um
Frankenstein?
Daniela: Olha, eu
trabalho a semana toda e não vou ter tempo para me reunir com vocês pra fazer o
trabalho.
Mariana: Pra você tá
bom assim, Florisa?
Florisa: Sim...
Florisa olha para o
fundo da sala.
Mariana: Florisa, você
tá bem?
Florisa: Hã... oi?
Mariana: Eu perguntei
se você está bem?
Florisa: Sim... Estou.
Mariana: Então, fica
marcado: quinta, às 7 horas?
Florisa: O quê? Quando?
Que horas?
Mariana: Quinta, às 7
horas!
Florisa: Não sei se eu
posso.
Mariana: Você concordou
há pouco.
Florisa: Eu entendi
outro dia.
Mariana: Você não
estava prestando atenção. Você está no mundo da lua.
Florisa: Só estou um
pouco estressada. O Caio tem trabalhado muito...
Entra Dylan.
Daniela: Olha quem
resolveu aparecer depois de três semanas. Achei que tinha abandonado a
disciplina de novo.
Florisa: É o Dylan? Ele
veio?
Mariana: Esse daí não
sabe o que quer da vida.
Florisa: Meninas, vocês
estão a fim de fazer alguma coisa no fim de semana?
Mariana: Florisa, a
gente tem que fazer o trabalho. Esqueceu?
Florisa: Por que a
gente não faz na minha casa? Eu posso preparar um bolo e a gente pode pedir
comida chinesa.
Daniela: Sábado eu
tenho um compromisso.
Florisa: Domingo. A
gente pode ir ao shopping também. Pegar um cinema. Depois a gente pode ir a um
restaurante japonês que eu fui com o Caio que a comida é divina!
Daniela: Domingo, não.
Quinta, às 7 horas.
Florisa: E você
Mariana? Topa ir na minha casa no sábado e no shopping no domingo? A gente pode
ver um filme de comédia, tá passando um ótimo, com aquela atriz... como é o
nome dela? Aquela atriz de cabelo ruivo... que contracenou com... Não importa.
O que você acha?
Mariana: Florisa, o
trabalho.
Florisa: Ah, o
trabalho! O trabalho a gente faz outro dia. Mas se vocês insistem tanto. Tudo
bem, quinta, às 7.
Mariana (à parte para
Florisa): Você tá apaixonada.
Florisa: O quê?
Mariana: Você tá
apaixonada, pelo Dylan, sua louca.
Florisa: Não estou não.
Mariana: Está sim. Seus
olhos não mentem.
Florisa: Eu amo o Caio,
Mariana.
Mariana: Você não
parava de olhar para o fundo. Tava emburrada, desligada. O Dylan chegou...
pronto! Você até voltou a sorrir.
Florisa: Eu não sei o
que você está dizendo...
Entra a professora.
Mariana: Pensa bem,
menina! Você é casada. Você vai botar tudo a perder por causa de um cara como o
Dylan?
Florisa: Mariana. Vamos
mudar de assunto.
Mariana: Eu só estou te
falando pra você tomar cuidado, refletir bem. Você pode tá entrando numa
roubada.
Professora: Boa noite.
Florisa: Eu sei onde
estou entrando. E não é uma roubada. Da minha vida cuido eu. Em todo caso,
agradeço o conselho.
Mariana: Desculpa, amiga.
Florisa: O Dylan. Que
absurdo, Mariana!
(...)
Dylan: Professora, dá
para você pedir pras três Marias parar de conversinha. Fica esse zum zum zum no
meu ouvido e eu não consigo prestar atenção na aula.
Mariana: Você, Dylan,
prestando atenção na aula? Não seja ridículo.
Dylan: Ué? Qual é o
problema? Afinal, eu não estou aqui?
Mariana: De corpo e
presença. O pensamento, voando longe.
Dylan: Como é que você
sabe. Você lê pensamento?
Mariana: Não é preciso
ler pensamentos para saber o que se passa na sua cabeça. Se é que você tem
alguma coisa aí dentro. Aliás, faz um tempão que não te vejo por aqui...
Dylan: Agora deu de me
controlar? Pelo visto têm muitas candidatas querendo substituir a professora.
Professora, toma cuidado!
Mariana: Eu só fiz uma
constatação.
Dylan: Pois saiba que
me aconteceu um imprevisto.
Mariana: O problema é
que seus imprevistos são completamente previsíveis.
Dylan: Eu não te devo
satisfação da minha vida.
Mariana: Não, Dylan.
Não deve. Você deveria dar satisfação a você mesmo e a quem te sustenta.
Quantas vezes você já fez esta matéria?
Dylan: Com esta
professora é a primeira.
Mariana: Com esta
professora pode ser. Mas, pelo que eu saiba, você já abandonou esta disciplinas
umas três vezes.
Professora: O que
acontece com vocês? Fica sempre esta briguinha entre este grupinho. Gente, eu
vou pedir para vocês resolverem seus problemas antes de entrar na sala de aula.
Porque, por causa de dois ou três, acaba atrapalhando toda a turma. Por favor,
sejamos razoáveis. Espero a compreensão de vocês. Podemos começar a aula?
Dylan: Sim, digníssima
professora!
[Tem início a aula]
Cena
2
Mariana e Florisa
esperam o Caio no portão do prédio da faculdade.
Florisa: Quem é aquele
homem que se aproxima? Ele é horrível.
Mariana: Que homem?
Florisa: Aquele,
vestido de terno e gravata.
Mariana: Florisa, é o
Caio.
Florisa: Não é não.
Vamos embora daqui.
Mariana: Você está
enlouquecendo, Florisa? É o Caio!
Florisa: É um monstro,
isto sim. Me leva daqui. Por favor!
Mariana: Você está me
assustando! É o Caio, ele veio te buscar.
Florisa: Eu não quero
ir com ele. Vamos embora, Mariana!
Mariana: Não!
Caio: Olá meninas. É
impressão minha ou vocês estavam fugindo de mim?
Mariana: Claro que não,
Caio. A Florisa só está um pouquinho confusa.
Caio: É? O que é?
Florisa: Nada.
Caio: Tudo bem mesmo,
amor?
Florisa: Tudo.
Caio: Podemos ir para
casa?
Florisa: Vamos.
[Saem]
QUINTO ATO
Cena
1
Dylan está parado em
frente ao prédio da faculdade. Entra Florisa.
Florisa: Olá.
Dylan: Oi, moça.
Florisa: Deixa eu te
perguntar uma coisa: cadê a sua namoradinha que eu nunca mais vi com você.
Dylan: Nós não estamos
mais juntos.
Florisa: Ela é tão
bonita.
Dylan: Você já ouviu
aquele ditado que beleza não se põe na mesa?
Florisa: Ela parecia gostar
de você.
Dylan: Não gosto de
mulher que fica me bajulando 24 horas por dia. A gente terminou, de boa.
Florisa: Vai assistir
aula hoje?
Dylan: Sabe, não tô a
fim.
Florisa: Eu também não.
Dylan: Nossa, que
milagre. Hoje, uma das santinhas vai cabular.
Florisa: De santinha eu
não tenho nada. Você já ficou com uma mulher mais velha?
Dylan: Tipo, 40 anos?
Florisa: Não. Tipo eu.
Dylan: Quantos anos
você tem?
Florisa: 28.
Dylan: Não me lembro.
Provavelmente.
Florisa: Você quer me
beijar?
Dylan: Quer dizer que o
maridinho liberou?
Florisa: Por favor, não me fale dele. Você quer ou não?
Dylan: Você não tá com
nenhuma faca escondida aí, não? Você não vai me matar, não é?
Florisa: Ah, quer
saber, estou perdendo meu tempo com você. Melhor mesmo ir para a aula.
Dylan: Não. Espere.
Beijam-se.
Florisa: Ai, Dylan,
como é que você pôde?
Dylan: Foi só um beijo.
Florisa: Não, não foi
só um beijo. Tudo começa a fazer sentido a partir de agora. Foi muito mais que
um beijo. É toda a minha vida. Não me solte, eu imploro, senão minha felicidade
desaba. Vamos, me abrace, apertado, não me deixe escapar. Porque, neste
momento, sou duas, uma falsa, cheia de limitações, e outra autêntica, de
desejos infinitos. Segure firme minhas mãos, impeça da falsa ir embora, consciente
de suas obrigações. Porque a autêntica não quer ir, e nunca quer cair outra vez
em si mesma, na falsa.
Dylan: Que tal fugir,
agora.
Florisa: Que sonho!
Para onde nós vamos? Não importa! Eu vou aonde você for!
Dylan: Venha.
Vão para um bosque e
sentam em um tronco caído na grama. Florisa deita nos ombros de Dylan e,
depois, se beijam novamente.
(...)
Florisa: Estas árvores,
este lugar, a brisa, o céu, as estrelas, tudo é tão perfeito; tudo é tão lindo!
Dylan: A Lua nos
observa. Testemunha os nossos erros. Será que a luz velada do luar vai nos
abandonar quando a claridade do Sol nos entregar?
Florisa: Não. A Lua é
aliada antiga dos namorados apaixonados.
Dylan: É verdade.
Quantas puladas de cerca a Lua já flagrou.
Florisa: Não fale
assim, por favor, com palavras chulas. Não estrague o dia mais feliz do mundo
com expressões rasteiras. Pecado maior é zombar do amor. A Lua é, para os
casais que se amam, o mais fiel de todos os cúmplices.
Dylan: Eu só tentei ser
realista.
Florisa: Se a realidade
é tão carente de beleza, melhor viver a ilusão.
Dylan: Tá bom, moça.
Vamos imaginar então que estamos em um universo paralelo, noutra dimensão,
outro tudo, e que atravessamos um portal entre monótonos dias cinzentos e um
mundo imaginado onde tudo é possível.
Florisa: Não é
imaginação. É verdade. E seu beijo é uma prova.
Beijam-se.
(...)
Dylan: Veja como a Lua
subiu. Ela não deveria ter permanecido no mesmo lugar? Afinal, ela estava ali a
um segundo atrás.
Florisa olha as horas
no celular.
Florisa: Oh, como
passou rápido! O tempo é inimigo, o traidor por entre nós que não se fez
perceber. A cada segundo que passa, ele nos separa um pouquinho. Ó tempo, não
seja tão cruel! Por que rouba, cada instante, esse pedacinho de alegria,
fazendo-me lembrar da hora em que estou prestes a voltar a ser completamente
triste?
Dylan: Este anel. A sua
aliança. É de ouro?
Florisa: Não, é de
lata. Metal vulgar. Não é um anel. É uma corrente, um cadeado, que me
aprisiona.
Dylan: Posso tirar?
Florisa: Liberte-me!
Dylan: Deve ser de ouro
mesmo.
Florisa: O valor do
ouro não está no ouro, mas na crença no valor do ouro. O ouro em si é só o
ouro, um mineral como qualquer mineral. Se deixassem o ouro em paz, ele seria
apenas o ouro, como a prata, a prata, o bronze, o bronze, o ferro, o ferro.
Seria tão sem valor como tudo que existe na terra. Então o valor do ouro
passaria a ser o valor de sua beleza, como tudo o que existe na terra. Não o
valor do dinheiro, que só é um vil papel e que, no entanto, traz tanta
discórdia, tanta injustiça. Isso no meu dedo é apenas o símbolo da minha
sujeição, da renúncia dos meus sonhos, que acatei desde muito cedo, porque um
dia me convenceram que era isso o que eu devia sonhar e foi isso o que sonhei.
Desfilar com este anel era mais importante do que tudo o que realmente
importava. Eu era apenas a menina bonita que cumpria perfeitamente bem o papel
escrito por um autor anônimo, mas me envaidecia com aplausos de todos. Eu não
era senão um plágio grotesco. Uma personagem que vivia a vida inventada e
descrita em um texto apócrifo. No fundo, nunca me questionei se era isso mesmo
o que eu realmente queria. Na verdade, eu não queria, pois eu nunca soube, até
o dia de hoje, o que era querer. Aceitava tudo porque era isso que esperavam de
mim. Este anel, sinceramente, não sei o que faz aí no meu dedo. Livre-se disso,
que me acorrenta, pois seu único valor é o de me fazer sofrer.
Dylan: Sendo assim:
adeus disco-voador!
Dylan joga o anel.
Dylan: Não se preocupe,
moça, eu te salvo dos alienígenas.
Florisa: Me salva, mas
com abraços, com beijos. Mil beijos! Mil não. Mil é pouco. Infinitos... Beijos
infinitos!
Beijam-se.
(...)
Toca o telefone celular
de Florisa.
Florisa: O que é isso,
um trovão? O céu está tão limpo; a noite, linda! Um trovão numa noite de
estrelas? Não será uma bomba?
Dylan: É a cotovia
avisando que o seu conde Páris está a sua espera, enquanto o Montecchio aqui
tem que descer do balcão, escorregar pela trepadeira e escapulir em desabalada
carreira pelo pomar.
Florisa: Não, engano
seu, meu Romeu. Eu não ouvi nada. Aqui, em Mântua, é uma cidade muito tranquila
e silenciosa.
Beijam-se novamente.
(...)
Toca o telefone celular
de Florisa outra vez.
Dylan: Eu não disse que
era a cotovia.
Florisa: Mas aqui não
tem cotovia. Deve ser o rouxinol.
Dylan: Pelo que eu
saiba, senhorita, rouxinol só existe na China.
Florisa: E por acaso o
senhorito se esqueceu que estamos na China?
Toca o telefone celular
de Florisa.
Dylan: Acho melhor
atender, porque, até a bela Florisa Capuleto voltar da China para Verona, ela
pode se atrasar muito em casa.
Florisa: Não é
Florença?! Gênova...
Florisa atende o
celular.
Florisa: Onde eu estou?
Não posso falar. O Caio tá aí? Ele está desesperado? Está com os seguranças? Eu
já vou indo.
Desliga o celular.
Florisa: Dylan, eu
preciso ir embora, senão serei presa, condenada e, certamente, apedrejada!
Aonde você jogou a aliança?
Dylan: Não sei. Ali. Na
grama.
Florisa: Dylan, vamos
procurar!
Dylan: Vem. Por aqui.
Está muito escuro.
Florisa: Encontre, Dylan,
por favor. O meu algoz e seus carrascos estão rondando à minha procura. Não
demora, vão me encontrar. Se me prenderem, serei torturada e, depois, atirada à
fogueira! Ajude-me, eu imploro. Só confio em você. Só você pode salvar a minha
vida!
Dylan: Aqui. Achei!
Florisa: Meu herói. Um
beijo como pagamento. E não precisa devolver o troco!
Florisa o beija.
Florisa: O que está
fazendo?! Como pode ser tão cruel? Aquele que há pouco me libertava agora me
prende com grilhões?!
Dylan: Sinto muito, sou
apenas o carcereiro. Cumpro ordens, tantas vezes, contra a minha vontade. Mas
te salvo duas vezes. Ao prendê-la, livro-te, agora, da fogueira.
Florisa: Oh, meu amor,
como você pode ser tão bom para mim?! Será que um dia, prisioneira e carcereiro
derrubam as grandes que os separam e fogem para uma ilha perdida no oceano?
Para onde você me leva agora? Não vê que eu não quero ir. Me solta! Largue a
minha mão. Não percebe que estou a ponto de chorar. Como você pode ser tão
insensível? Olha o que você fez! Será que minhas lágrimas não são suficientes
para convencê-lo a não se separar de mim? Não é por este lado. É por ali! O que
você quer que eu faça? Que me ajoelhe aos seus pés, que prenda as suas pernas e
peça desesperada para não me levar por aqui? Depois de tanto me beijar,
confisca agora os meus direitos adquiridos? Que tipo de libertador é você? Como
pode brincar com meus sentimentos assim?! Espere. Por favor, não me solte, amor
da minha vida, não conheço pior punição do que ficar longe do seu abraço. Mil
vezes a fogueira! Pois eu preferia me tornar sua escrava, carcereiro, a ser
entregue àquele tribunal perverso.
O celular toca. Florisa
atende.
Florisa: Estou indo.
[Para Dylan]: Adeus, meu amor.
Dylan: Moça, se aquele
tirano encostar um dedo em você – eu disse, um dedo! –, eu mato ele!
[Saem cada um para um
lado]
Cena
2
Mariana: Onde você
estava? Você não atende o telefone. Florisa, você está chorando? O Dylan te fez
alguma coisa?
Florisa: O Dylan não
fez nada. Ele só me faz bem, com seus carinhos. Quem fez foi você, Mariana. Foi
você quem ligou para o meu celular. Você é a única culpada pelas minhas
lágrimas.
Mariana: Menina, o Caio
está maluco. Eu falei que você tava passando mal e foi ao banheiro? Mas ele
está enlouquecido, acha que o Dylan te raptou.
Florisa: Quem me dera
se o Dylan me raptasse. Aquele covarde! Eu iria com ele para qualquer lugar,
desde que o meu cativeiro fosse o seu amor.
Mariana: Você tá louca.
Louca! É o Dylan! O Dylan! Você tem um marido lindo maravilhoso que te ama!
Você só pode estar louca.
Florisa: Não estou
louca, Mariana. Nunca estive tão lúcida!
Mariana: O Dylan é um
cafajeste, Florisa!
Florisa: Não é não. Por
que dirige ofensa a quem não está aqui e não pode se defender? Não percebe que,
ao atirar nele, sou eu o alvo de suas injúrias? Pois fique sabendo que o Dylan
é puro como um menino e...
Mariana: Será o mesmo
Dylan que eu conheço?
Florisa: O próprio.
Mariana: Não consigo
acreditar! Você sentia aversão por ele até alguns dias atrás.
Florisa: Você nunca
soube o que eu sentia.
Mariana: O Dylan não
tem nada a ver com você. Vocês são tão diferentes...
Florisa: Com que
direito quer me separar de quem eu tanto quero? Repita isso de novo e tem aqui
uma inimiga!
Mariana: Mal posso
acreditar no que estou ouvindo.
Florisa: Acredite!
Certa vez, eu encostei o Dylan na parede para tirar satisfação...
Mariana: Você não fez
isso!
Florisa: Fiz.
Mariana: E então?
Florisa: Então eu vi
nos olhos dele como ele é doce, meigo, sincero...
Mariana: Realmente, não
consigo acreditar, Florisa. Você pirou de vez. Silêncio! O Caio está vindo aí.
[Entra o Caio
acompanhado de dois seguranças]
Caio: Cadê aquele
canalha, eu mato ele!
Mariana: Eu encontrei
ela. Ela estava no banheiro.
Caio: Nós revistamos
todos os banheiros. Onde ela estava? Eu ligo, ela não atende!
Florisa: Eu estava no
banheiro...
Mariana: ...do outro
prédio.
Segurança: Doutor, a
moça já tá aí. Parece que tá tudo bem. Nós precisamos voltar pro serviço.
Caio: Ok. Obrigado.
Abre a carteira, pega
uma nota de um maço de dinheiro e entrega para o segurança.
Segurança: Obrigado,
doutor.
Os seguranças saem.
Caio: Florisa, tá tudo
bem mesmo?
Florisa: Tudo.
Caio: Seus olhos estão
vermelhos. Parece que você andou chorando...
Florisa: Agora estou
melhor. Estou bem.
Caio: Aquele maníaco
não encostou a mão em você?!
Florisa: Não.
Caio: Você está bem
mesmo?
Florisa: Sim.
Caio: Podemos ir
embora?
Florisa: Podemos.
Caio: Mariana, muito
obrigado.
Mariana: Ora, não foi
nada.
Caio: Já vamos. Tchau.
Mariana: Tchau.
Cena
3
No bar do Jairo. De
fora, escutam-se gargalhadas.
Dylan: Então, Jairão,
tô pegando uma coroa. Mulherão mesmo. Não é dessas menininhas que, ai, não pode
fazer isso, ai, não pode fazer aquilo. Sabe como é? Experiência é outra
coisa...
Jairo: Tô ligado. Quantos anos ela tem.
Dylan: Uns quarenta,
talvez mais. Pô, Jairão, é deselegante perguntar a idade de uma mulher. Não
queima seu filme não, meu irmão. Me vê outra dose de cachaça aí. Caprichada,
heim?! Hoje eu só saio daqui carregado!
Entra Mariana.
Dylan: Êh Jairão, desse
jeito seu bar vai falir. Uma freira desgarrada acaba de confundir sua espelunca
com uma igreja! Ô minha casta irmãzinha – (à parte, para o Jairo) de casta essa
daí não tem nada! –; irmãzinha, errou o caminho do convento, foi? Aqui acontece
de tudo, menos rezar o padre nosso!
Mariana: Dylan, eu
sabia que ia te encontrar enchendo a cara no Jairo. Preciso falar com você.
Dylan: Ao seu
dispor,madame.
Mariana: Cadê a Tati?
Dylan: Me chutou pra
rua. Mas acabo de pescar peixe maior.
Mariana: Minha amiga
Florisa.
Dylan: Por
coincidência, essa mesmíssima pessoa a quem você nomeia... Jairão, o meu irmão,
não me deixa sem combustível não! Glória seja o sacrossanto maldito álcool!
Aleluia! Outra dose da branquinha, parceiro!
Mariana: Jairo, como é
que você deixa seu bar tão mal frequentado?
Jairo: Sabe com é,
enquanto uns ganham, outros perdem, enquanto uns ficam sóbrios, outros ficam
bêbados. No meu estabelecimento, eu estou numa ponta da corda. Mas se não
fossem os da outra ponta, como eu ia pagar a escola da minha filhinha. Pessoas
como o Dylan são mais úteis do que toda a escada social. São elas a base da
sociedade que sustentam todo o ciclo econômico, desde a professorinha da creche
até o magistrado na corte.
Dylan: Boa, Jairão! Eu sou
apenas uma vítima do sistema. Enquanto os parasitas dormem tranquilos, eu sou
espoliado dia e noite, só porque optei por ser feliz. Para esquecer minha
triste sina, de oprimido, mais uma dose, da venenosa, Jairão!
Mariana: Taí, Dylan,
alguma coisa que você poda fazer: se candidatar pelo partido dos bêbados!
Dylan: Não senhora, a
história tem mostrado que aqueles que representam os oprimidos se tornam
opressores no governo. Nunca ouviu dizer que o poder corrompe? Não conhece a
fábula das rãs? A matemática em política sempre dá o mesmo resultado: seis por
meia dúzia. Quem faz política é aquele que quer pular etapas, que se aproxima
do poder para obter favores e vantagens. Você pode achar que não, guria, mas eu
tenho dignidade! Sem essa de partido. Que os bêbados se libertem sozinhos de
seu jugo sem ajuda de intermediários sóbrios. Estes lobos na pele de cordeiro.
Mariana : (à parte,
para o Dylan) Florisa é casada, Dylan. Você vai destruir a vida dela.
Dylan: Até onde me
consta, ela é maior de idade e independente. E, na verdade, é ela que pega no
meu pé: Ai, Dylan, me beija! Ai, Dylan, eu não posso ficar um minuto sem seus
beijos. Ouviu essa, Jairão! Beijos! O Jairão tá dando gargalhada! Maldade,
Jairão, maldade!
Mariana: Pelo visto é a
única coisa que vocês fazem aqui.
Dylan: Relaxa, guria.
Aproveita a vida. Pede uma dose aí.
Mariana: Hoje é
terça-feira, e se você frequentasse as aulas, saberia que a professora deu
texto pra ler e pediu uma resenha do “Anna Karenina”. Ou seja, amanhã é dia
útil, as pessoas estão ocupadas, trabalham, estudam... Sabia disso?
Dylan: Amanhã eu
estarei ocupado em dormir o dia todo, provavelmente de ressaca! Ô Jairão, você
conhece o livro “Anna Karenina”?
Jairo: Já ouvi falar,
mas não li não.
Dylan: Eu também não.
Mas é a história de uma gostosa que mete o chifre no marido corno manso!
Jairo: Acho que vi o
filme...
Mariana: Ai Deus!
Dylan: Aposto que todo
mundo que tá aqui dentro é cornudo... Olha! O Jairo até acertou o boné, depois
que eu falei isso. E o careca ali no canto? Tá coçando a testa, preocupado...
Tira o boné, Jairo, e mostra pra todo mundo ver o seu troféu.
Jairo: É nada. Minha
esposa é uma santa. É de casa para o trabalho, do trabalho pra casa. Toda vez
que eu chego em casa ela tá lá, com aquelas agulhas grandes – isso, agulhas de
tricô – costurando, costurando, costurando... deve estar preparando uma malha
para mim.
Dylan: Sabe por que ela
não termina nunca essa malha, Jairão? Porque ela tá costurando um chapéu maior,
que esse aí já não cobre mais o par de galhos... Jairão! Ô meu querido, meu
copo secou! Não faz isso comigo não, irmão! Senão eu vou ter um treco aqui e
vou parar no hospital. Não permita esta tragédia. Não quero arcar sozinho com
todo o ônus da pirâmide social. Faça a bondade de me ajudar a dar uma
destinação melhor ao pouco dinheiro que me resta, mas que é muito bem empregado
aqui no seu estabelecimento. Me dê algo que me faça esquecer minha condição de
explorado e que me faça acreditar que a vida ainda pode ser bonita. Encha o
copo sem dó da cachaça mais vagabunda e barata que você tiver aí!
Jairo: Assistiu a
goleada no domingo?
Dylan: Cê tá doido,
Jairão. Cê acha que eu vou perder noventa minutos da minha vida vendo os outros
jogar. Prefiro estar em busca de alguma aventura amorosa, como, por exemplo,
sair com uma mulher casada. Porque, neste caso, eu prefiro estar do outro lado
da corda.
Mariana: Não dá mesmo
para te levar a sério, Dylan. Olha pra você. Não aguenta nem ficar em pé. Estou
perdendo meu tempo com você.
Dylan: Ué? Você estava
falando comigo? Juro que pensei que você falava com aquele bigodudo lá atrás. Ô
bigode! A gatinha aqui te achou o cara mais sexy do bar. Ih! Ganhou Mariana, o
bigode te deu uma piscadinha!
Mariana: Você é um
cretino, Dylan. Tenho pena da minha amiga que se apaixonou por um idiota como
você e pode botar tudo a perder por sua causa. Por que você não faz um favor
para a humanidade e some do planeta Terra?! Até nunca mais, idiota!
Dylan: Ai Dylan, por
favor, eu te suplico, um beijo, e mais um beijo... Minha vida por um beijo!
Dylan, socorro, me beija senão eu vou morrer! Pessoal, para de rir, isso é
sério. Jairão, agora sou eu quem pede socorro, acuda-me, meu camarada, eu
imploro, não por seus beijos, mas por mais um copo de pinga!
SEXTO ATO
Cena
1
Na sala de aula.
Florisa: O Dylan não
chega.
Mariana: Ele sempre se
atrasa.
Florisa: Não, dessa vez
ele não vem mais.
Mariana: Calma, a
professora nem entrou na sala ainda. O Dylan sempre chega atrasado.
A professora entra.
Florisa: Ele não virá.
Eu sinto isso. Ele me abandonou.
Mariana: Se ele não
viesse, seria até bom.
Florisa: Não me diga o
que é bom para mim e o que não é. Ele não vem... Vou chorar!
Um colega cutuca o
ombro de Florisa.
Florisa: Oi?
Colega: Mandaram
entregar isto.
Florisa: É um bilhete.
É do Dylan, Mariana! O Dylan está lá fora me esperando.
Mariana: Ei, aonde você
vai? E a aula, sua louca?! O Dylan não vale a pena, acredite em mim. Ele não
presta...
Florisa: Depois eu te
encontro. Beijos!
Sai da sala e beija o
Dylan. Os dois saem.
Dylan: E aí, moça, tá
fim de ir para a minha casa?
Florisa: Sua casa?!
Dylan: Sim, minha casa.
Florisa: Lógico!
Vamos...
Saem do prédio da
faculdade.
Dylan: Ali, o meu
carro.
Florisa: Este é seu
carro?!
Dylan: Você já viu um
punk de carro novo?
Florisa: Você não é
punk.
Dylan: Sou muito pior.
Dylan e Florisa entram
no carro e vão para um lugar deserto, com alguns prédios por perto.
Florisa: Não íamos à
sua casa?
Dylan: Essa é a minha
casa.
Florisa: Onde? O carro?
Dylan: É. Olha meu cobertor
e meu travesseiro no banco traseiro.
Florisa: Você consegue
dormir aqui?
Dylan: Se eu dissesse
para você que aqui é confortável, eu estaria mentindo.
Florisa: E como você
toma banho?
Dylan: O zelador
daquele prédio me deixa usar o banheiro.
Florisa: E seus pais?
Dylan: Moram no
interior.
Florisa: E eles sabem
que você mora num carro?
Dylan: Não. Eles me
enviam o dinheiro do aluguel da república todo mês.
Florisa: E por que você
não vai para a república?
Dylan: E como é que
você acha que eu compro minhas drogas?
Florisa: Não acredito
nisso.
Dylan: É sério.
Florisa: Você é
completamente louco, cara.
Dylan: Sabe, moça,
naquele dia, eu fiquei bêbado e falei coisas sem pensar...
Florisa: Eu sei, a
Mariana me contou. O que você disse?
Dylan: Acho que eu te
imitei, com deboche.
Florisa: Todas as
cartas de amor são ridículas, Dylan.
Dylan: Sim, cartas de
amor têm de ser ridículas!
Florisa: Coitado do
Fernando Pessoa. Transformaram seus versos em frases de autoajuda.
Dylan: Não só os dele.
Muitos outros. É a indústria cultural.
Florisa: Tipo: imã de
geladeira, cartão de aniversário, capa de caderno...
Dylan: Quero te pedir
desculpa.
Florisa: Não. Hoje não
é um dia para se estragar com desculpas e remissões. Um dia você presta contas
à sua consciência.
Dylan: Mas isso é tudo
o que eu não tenho, moça!
Florisa: Eu sei! E é
por isso que eu gosto de você...
Dylan: O Jairo fechou o
bar e me jogou na sarjeta, bodeado. Por essas e outras, perdeu um cliente
inveterado.
Florisa: Você mereceu.
Dylan: Eu sou o
culpado?
Florisa: De me fazer
apaixonar.
Dylan: Você disse que
não queria desculpas.
Florisa: Sim. Mas não
brinque com meus sentimentos.
Dylan: Não me peça
isso.
Florisa: Sou tão
frágil.
Dylan: Não, não é,
moça. Você é uma mulher admirável.
Florisa: E este dente
quebrado, porque você não põe uma resina nesse pedacinho que tá faltando?
Dylan: É uma das minhas
cicatrizes.
Florisa: Não me faça
rir, Dylan.
Dylan: Sério! Faz me
lembrar do meu primeiro salto de paraquedas.
Florisa: Você já pulou
de paraquedas?!
Dylan: Muitas vezes.
Floriza: Engraçado, me
disseram que você quebrou o dente numa briga.
Dylan: Quem falou isso?
Florisa: A Mariana.
Dylan: E ela tem razão.
A briga começou no avião.
Florisa: Começou no
avião?
Dylan: Isso. E terminou
no chão.
Florisa: O que
aconteceu?
Dylan: Eu quebrei o
dente. Mas você precisava ver o estado que ficou o outro cara.
Florisa: Eu quero
saber!
Dylan: Só vou te contar
uma coisa, ele não conseguiu puxar a cordinha do paraquedas.
Florisa: Mentira! Você
quebrou esse dente andando de bicicleta. Você é muito falastrão.
Dylan: Garota, tem
coisas da minha que só dizem respeito à minha pessoa.
Florisa: Você é um
brincalhão.
Dylan: Minha vida é um
livro aberto.
Florisa: Só você para
me fazer rir, Dylan.
Dylan: Mas tudo o que
eu digo você dá risada! Não é tão difícil.
Florisa: Ouvir a sua
voz já me deixa contente.
Dylan: Você precisa
acreditar em mim.
Florisa: Eu acredito. É
só nisso que eu acredito.
Dylan: Sem dar risada!
Florisa: E você não
estuda não?
Dylan: Só o que eu
gosto de estudar.
Florisa: Você não
pretende terminar o curso?
Dylan: Não sei. Às
vezes, tenho a impressão que estou no lugar errado.
Florisa: Por quê?
Dylan: Quando eu era
criança, eu queria ser mecânico. Eu nem gosto tanto assim de carro. Gosto mesmo
é do motor. De fazer a máquina pulsar. Meu pai tinha um carro enorme quebrado e
há anos estava parado em frente de casa. Não tinha jeito nenhum de mecânico
consertar aquele carro. Eu ficava olhando o motor e sonhava um dia em botar
aquela geringonça pra andar. Certo dia, meu pai resolveu vender o carro pro
ferro-velho. Uma ninharia. Um cara chegou, abriu o capô do carro, examinou,
tirou a bateria do carro e trocou pela do guincho. Entrou no carro e deu a
partida. Eu só ouvi o estrondo do motor. O chão estremeceu todo. Um terremoto!
Em seguida foi subindo uma nuvem branca de fumaça tão grande, mas tão grande,
que cobriu todo o carro! De repente, eis que surge o carro, saindo triunfante
como um foguete do meio da fumaça, atravessa toda a rua, depois vira e sobe uma
pirambeira tão íngreme que parecia que estava decolando numa viagem rumo à Lua.
Você precisava ver a cara de idiota do meu pai, perplexo, rindo sem graça!
Tenho a convicção de que ainda hoje o nosso carro está voando pela galáxia...
Florisa: Dylan, seu
olhos ficaram marejados de lágrimas...
Dylan: Impressão sua.
Florisa: Encosta a mão
no meu peito. Estou queimando...
Dylan: Moça, posso
sentir o seu coração, disparado. Bate por mim?
Florisa: Sim. Minha
respiração, Dylan!
Dylan: Olha, o vidro tá
ficando embaçado. Tá chegando a hora.
Florisa: Que hora?
Dylan desenha no
parabrisa do carro.
Florisa: O que é isso?
Dylan: Uma Lua.
Florisa: Por que você
fez uma Lua?
Dylan: Nossa
Lua-de-Mel.
Florisa: Aqui?!
Dylan: Quer voltar?
Florisa: Não. Que
lindo! Nossa primeira noite sob a luz do luar.
Dylan: É preciso
desligar a cotovia...
Florisa: O rouxinol!
As janelas do carro
ficam totalmente embaçadas.
(...)
Florisa: E isso agora.
O que você desenhou? Duas estrelinhas? Somos eu e você, meu amor?
Dylan: Não, são
olhinhos. Veja: uma carinha. Sorrindo. Como você e eu, agora.
Cena
2
No carro. Na alvorada.
Dylan: Florisa, acho
melhor você se vestir. Daqui a pouco vai amanhecer e, não sei se você reparou,
as paredes da minha casa são transparentes. Alguém pode nos ver.
Florisa: Não tem
importância, seremos como Adão e Eva no Paraíso. E, além do mais, não vai
amanhecer.
Dylan: Como não? Olhe a
cor do céu: o azul escuro está ficando azul-marinho. Fachos de luz cor de rosa
e dourada atravessam o céu aqui ali.
Florisa: Para mim, o
azul está cada vez mais escuro. Quase preto. E estamos tão juntinhos que sequer
seremos notados.
Dylan: Falo sério, está
clareando. Não posso me vestir com você em cima de mim.
Florisa: Cadê a nossa
cortina feita de amor?
Dylan: Eu abri uma
fresta na janela. Senão morríamos sufocados.
Florisa: Não seria uma
má ideia: morrermos abraçadinhos.
Dylan: Se alguém nos
denunciar, poderemos ir presos.
Florisa: Se eu for
presa com você, meu querido, prisão perpétua será uma sentença benfazeja.
Dylan: Ficaremos em
celas separadas.
Florisa: Isso nunca!
Juiz maligno. Justiça perversa. Por que o mundo sempre conspira contra a minha
felicidade?!
Dylan: Veja, Florisa,
vem vindo alguém.
Florisa: Quem é?
Dylan: É o vigia do
prédio.
Florisa: Ai que
vergonha!
Dylan: Ele está vindo
depressa pra cá. Minha camisa... Minha camisa... Onde está minha camisa? Aqui!
Florisa: Não, tonto,
essa é a minha calça!
Dylan: Pare de dar
risada, Florisa, não consigo me concentrar assim... Achei!
Florisa: Isso que você
tá pondo na cabeça é a minha calcinha, seu palhaço. Ah, ele tá se aproximando!
Dylan: Esse vigia me
conhece. Vou sair com o carro!
Florisa: Por que não
sai?!!!
Dylan: Não tá pegando.
Não tá dando a partida!
Florisa: Ai que
vergonha, ele tá me vendo. Anda logo!
Dylan: Quanto mais você
ri, mais eu fico nervoso! Não consigo girar a chave.
Florisa: Gira, Dylan!
Ele tá aqui do meu lado, ele tá me vendo!
Dylan: Se cobre com
alguma coisa.
Florisa: Pegou? Pegou!
Dylan: Pegou!
Florisa: Cuidado! Você
vai atropelar o homem!
Dylan: Para de rir
senão eu vou bater!
Florisa: Não consigo
parar: olha a cara do vigia!
Dylan: Parece que viu
um fantasma.
Florisa: Vou mandar um
beijo para ele.
Dylan: E ele?
Florisa: Mandou outro.
Dylan: Que simpático!
Eu vou mandar também.
Florisa: Você não!
Dylan: Por quê?
Florisa: Porque todos
os seus beijos estão sob minha jurisdição.
Dylan: Egoísta.
Florisa: Sou mesmo.
Dylan: Então me manda
um beijo. Fiquei com ciúmes.
Florisa: Com você no
volante jamais.
Dylan: Então não pare
de rir. Gosto de ouvir sua risada. Como risada de criança.
Florisa: O que que eu
ganho em troca?
Dylan: Um sorriso.
Florisa: Então pare o
carro e olha para mim.
Dylan para o carro.
Dylan: Por Deus, como
você é linda!
Florisa: É? E eu sou
toda sua...
Beijam-se e depois se
vestem.
Dylan: Tive uma ideia.
Vamos ver o nascer do Sol. Eu conheço uma praça, num lugar montanhoso, que dá
para ver todo o horizonte da cidade. Eu sempre vou lá.
Florisa: Ótima ideia!
Chegam no lugar.
Dylan: Ué? Por que o
Sol não aparece. O dia já está claro.
Florisa: Dylan,
querido, esta é a Praça do Pôr do Sol.
Dylan: Mas eu já vi o
Sol nascer aqui.
Florisa: Só se a Terra
girasse ao contrário. Você viu o pôr do Sol. Eu também já vim aqui. Mas isso me
faz lembrar... Vamos embora daqui, por favor.
Dylan: Já sei. Vamos
pegar a estrada. Fazer um bate-volta. Vamos tomar um banho de mar.
Florisa: Eu estou sem
meu biquíni...
Dylan: A gente compra.
Não, a gente nada assim mesmo!
Florisa: Não sei,
Dylan. Talvez eu devesse ir para a minha casa. Oh, não! Não. Mil vezes não! Eu
vou com você. Vamos.
[Saem]
Cena
3
Na praia.
Dylan: Você viu o
jacaré que eu peguei?
Florisa: Você quase se
afogou!
Dylan: Você ficou
engraçada com as minhas roupas. Mas continua linda.
Florisa: Ficou um pouco
largo.
Dylan: O que foi? Por
que esta cara?
Florisa: Eu liguei o
celular. Tem trilhões de ligações perdidas.
Dylan: O que você vai
fazer?
Florisa: Eu atendi o
meu marido.
Dylan: O que você
disse?
Florisa: Quase nada.
Disse que explico tudo quando chegar em casa.
Dylan: Vamos subir,
então?
Florisa: Vamos. Mas
estou preocupada, você não dormiu nada.
Dylan: Velei teu sono.
Florisa: Acordei
achando que estava em casa. Achei que tudo não passava de um sonho. Mas,
talvez, seja um sonho, e eu estou prestes a acordar.
Dylan: Quer dirigir?
Florisa: Eu não sei
dirigir seu carro.
Dylan: Carro é tudo
igual.
Florisa: Não gosto de
dirigir. Tenho medo. Ainda mais na estrada!
Dylan: Eu não estou com
sono. Mas posso dormir no volante. Toma a chave. Vamos.
Florisa: Tá bom, eu
dirijo.
[Saem]
SÉTIMO ATO
Cena
1
No apartamento de Caio
e Florisa. Caio aguarda sentado no sofá da sala.
Entra Florisa. Caio
levanta-se.
Caio: Que brincadeira é
essa? De quem é esta camisa? Cadê suas roupas?
Florisa: Estão
molhadas.
Caio: Minha agenda
cheia, eu cheio de compromissos, tudo atrasado e você aí, apenas com uma
camisa. Onde você estava?
Florisa: Na praia.
Caio: Na praia? É isso
que você me diz? Na praia. Todos desesperados atrás de você, achando o pior –
até acionei um amigo delegado – e você vem me dizer com a maior cara de pau:
“na praia”!
Florisa: Você me
perguntou e eu disse onde estava.
Caio: Já ligou para sua
mãe?
Florisa: Já.
Caio: Agora me conta o
que aconteceu antes que eu perca a cabeça.
Florisa: Eu saí com
outro homem.
Caio: O que que você
falou? Acho que eu não ouvi muito bem.
Florisa: Caio, eu saí
com outro homem.
Caio: O quê?! SUA
VAGABUNDA!!!
Florisa: Na grite assim
comigo.
Caio a segura pelo
braço.
Caio: Olha o que você
tá dizendo na minha cara, vadia! Você tem a coragem de dizer isso e pedir para
que eu não grite com você?
Florisa: Caio, me
larga, você tá me machucando!
Caio fecha o punho e
encosta a mão no rosto de Florisa.
Caio: Isso é pouco
perto do que eu vou fazer com você.
Florisa: Ai, me larga!
Tá doendo, Caio!
Caio: Vai doer muito
mais quando eu te encher de porrada. Eu vou te matar.
Florisa: Então me mata
logo, porque se eu sobreviver eu vou te denunciar. Eu vou na imprensa. Eu vou
contar para todo mundo quem é o homem que está por trás do jovem empresário de
sucesso. Todos vão saber o monstro que você é.
Caio: Sua rameira! Sua
puta!
Florisa: Você não me
ofende falando assim.
Caio: Sabe o que você
merece? Você merece uma surra, como toda mulher à toa. Mas eu não vou descer a
tanto, ao seu nível. Não! Não! Eu tenho muito mais a perder do que a satisfação
que me daria te dar uns bons sopapos e te mandar pro hospital.
Florisa: Solte-me, por
favor! Tá doendo muito, Caio!
Caio solta Florisa
bruscamente.
Florisa: Você me
machucou!
Caio: “Você me
machucou”. Eu só não te quebro a cara, sua vagabunda, porque eu não vou
estragar a minha vida por causa de um monte de lixo como você.
Florisa: Você tem medo
das consequências. Você é um covarde. Olha o seu tamanho e o meu. Bater em
mulher é fácil. Mas eu não sou uma criança que lhe deve obediência
incondicional, para não ser castigada. Eu não sou sua escrava que, se não
cumpre as suas ordens, você manda chicotear no tronco. Você é meu marido, não é
meu patrão, não é meu dono.
Caio: Como você é
cínica.
Florisa: Caio, eu
cansei de ser o seu bichinho de estimação. A menina de família, moça direita,
pra casar, que você exibe como se fosse mais uma de suas conquistas, para se
vangloriar e fingir para a sociedade o quanto você é um homem sério. Você só
pensa em você mesmo, em seu status. Pois fique sabendo que você não é nenhum
exemplo de marido não. Pensa que eu não sei que você se diverte com outras
mulheres. Que eu acredito nessas reuniões de trabalho ou viagens com os amigos.
Que eu acredito que você não sai com outras mulheres apenas por amor à sua
mulherzinha ou por escrúpulos ao seu casamento? Você acha que eu sou uma
tonta?!
Caio: Não fale assim
comigo, cadela.
Florisa: Se você pode,
eu também posso! Caio, eu cansei de representar um papel coadjuvante ao seu
lado. De ser o seu acessório que você leva a tiracolo só para se exibir aos
seus amigos. Florisa, a fiel esposa do arrojado empresário Caio Klein. A manequim,
a boneca de cera, que enfeita as rodas sociais ao lado do marido bem sucedido.
Um abajur! A esposa que tem prazo de validade e que será candidata a mais nova
perua socialite depois que seu generoso marido trocá-la por uma moça vinte anos
mais nova. Ou que vai suportar calada às inúmeras aventuras extraconjugais do
respeitável chefe de família. Não, eu não aguento mais essa vida falsa, de
tantas mentiras. Não é isso que eu quis para mim. Não é esse o meu destino.
Caio: Ingrata, canalha!
Ninguém vai te querer.
Florisa: Isso que você
pensa.
Caio: Quem vai querer
ficar com uma piranha como você? Todos vão saber quem você é. A sua máscara
caiu, minha filha!
Florisa: Tem quem me
queira, sim. E fique sabendo que eu tive uma noite maravilhosa como jamais sonhei,
como eu nunca tive com você, com alguém que realmente se importa comigo!
Caio: Quem é o cara? É
maníaco, não é? Fala, sua puta!
Florisa: Ele não é
maníaco. É o cara mais bacana que eu já conheci em toda a minha vida. Eu estou
completamente apaixonada por ele.
Caio: CALA A BOCA! EU
MATO ESSE CARA! EU MATO ESSE CARA!
Florisa: Vai ter que me
matar primeiro!
Caio: Seria um prazer,
você é pior do que ele. Mas eu não vou sujar minhas mãos com uma mulher da
vida, uma reles garota de programa. Que vergonha para os seus pais...
Florisa: Prefiro ser
uma garota de programa do que ser a sua esposa santa do pau-oco. Sou garota de
programa, sim! Ou melhor, antes eu fosse, pois com certeza seria mais feliz,
teria uma vida independente. Mas ainda há tempo. Eu vou transar com todos os
caras que quiserem sair comigo. Você vai ser mil vezes corno!
Caio: Tô me segurando
para não te partir no meio. Não me provoca! Você não sabe do que eu sou capaz.
Mas quer saber... Vai, vai transar, sim, com todo mundo, pois essa é a sua
verdadeira vocação...
Florisa: Ah, e você
pode ser o garanhão, não é?! Pegar todas as garotas que estão interessadas no
seu dinheiro...
Caio: Eu sou homem,
cumpro meu papel de homem! Homem é predador, tá no sangue! Tem que pegar todas
mesmo senão não é homem.
Florisa: Respeite as
mulheres! Você me dá asco, é totalmente nojento.
Caio: Só que eu não
sabia que você era mais galinha do que as putas que saem comigo de graça. O
michê que você cobra é muito alto e, para ser sincero, e olhando para você agora,
nem vale tanto a pena assim. Já peguei muito melhores. Põe melhor nisso!
Florisa: Eu sou uma
burra mesmo. Sempre quis ser a esposa fiel, ingênua; sempre querendo te
agradar... Você não passa de um cafajeste que trata as mulheres como lixo.
Caio: O que você fala
eu não ligo a mínima. É e sempre será uma vadia. Não se dá o valor.
Florisa: Eu quero me
separar.
Caio: Ótimo! Eu também.
Mas, agora que você acabou com o nosso casamento, eu não preciso ter mais
segredos com você...
Florisa: Olha o que você
disse: que enquanto éramos casados você tinha segredos! Que tipo de homem é
você afinal?! Como pude ficar tanto tempo com você? Fui muito burra mesmo de me
casar com o primeiro imbecil que me apareceu. Todos estes anos... Ah, que ódio!
Se arrependimento matasse...
Caio: Sim, eu tinha
segredos e o melhor de todos eu vou te contar. Senta. Você vai precisar sentar.
Florisa: Estou
esperando.
Caio: Sabe com quem eu
passei a minha despedida de solteiro? Surpresa! Com a sua amiguinha de infância
Julia. Amor, a nossa Julinha!
Florisa: Sádico! Não
ponha a Julia no meio...
Caio: Por que não? É
ela que se põe! É só eu dar um estalo de dedos e lá vem ela correndo.
Florisa: Você está
caluniando a Julia. Nós somos amigas desde muito pequenas. Deixe a Julia fora
disso, por favor. Caio, não seja mais
cruel do que você já está sendo. Além do mais, ela é muito religiosa e está
noiva. Respeite ao menos isso.
Caio: Muito, muito
religiosa. Uuuuh! Só eu sei como ela é religiosa! Só todos os religiosos forem
como a Julia não vai sobrar lugar lá no andar debaixo... Espera!
Vai até um quarto e
volta com um ipad.
Florisa: De quem é esse
aparelho celular?
Caio: É meu.
Florisa: Esse não é seu
aparelho celular.
Caio: Eu tenho muitos
celulares, burra. Você não sabe nada da minha vida.
Florisa: Eu realmente
estou conhecendo meu verdadeiro marido apenas no dia de hoje.
Caio: Olha a sua amiga
em ação. Veja. A Julia tem um fetiche: gosta de ser filmada.
Florisa: Não pode
ser...
Caio: Ah eu tenho
muitos “vídeos pornôs” [faz aspas com os dedos] da sua melhor amiga. Penso em
editá-los, apagar meu rosto e jogar tudo na internet. Como seria o título?
“Crente do rabo quente”? Não, essa é muito velha. Muito batido. Vamos, amor, me
ajude a achar um bom título para o filminho da sua amiguinha de infância. Que
tal: “É dando que se recebe”? Já pensou o viadinho do noivo dela procurando
filmes de sacanagem em sites de putaria e encontrar a noivinha estrelando um
vídeo amador?
Florisa: Você não seria
tão canalha.
Caio: Ah, sim! O que
temos aqui? Nesse outro celular. Esse você conhece, né? Olha só, amor, o que eu
descobri, nós também temos um filminho quente! Acho que você e a sua amiga
podem se candidatar às mais novas pornô star da internet. Que tal fazer uma
dupla? Trabalho não vai faltar! Vou postar hoje mesmo!
Florisa: Você não pode
fazer isto.
Caio: Eu posso tudo,
meu amor, eu tenho dinheiro.
Florisa: Eu quero a
separação, já disse!
Caio: Não dou. Você
acha que vou dividir o meu patrimônio com uma pistoleira que me deu o golpe do baú?
Eu coloco cinco advogados contra você, jogo a sua integridade no esgoto, eu vou
te ferrar! Você vai ver!
Florisa: Eu não quero
nada de que venha de você. Não quero nada que é seu. Só quero minha liberdade
de volta.
Caio: Assina um
documento renunciando todos os seus direito, e eu dou a separação.
Florisa: Eu assino! Eu
assino! Eu assino! Eu assino agora!
Florisa começa a chorar
compulsivamente.
Caio: Chora sua vaca.
Vai, chora, vacona! Chora porque você vai pro olho da rua. Você vai sair com
uma mão na frente e outra atrás deste casamento. E ainda vou te cobrar as
viagens, as roupas, os sapatos, as bolsas, o meu tempo, e tudo que você me
roubou. E ainda vou te cobrar os juros. Vai te sair muito caro. Você ainda vai
sair devendo, sua putinha, pode escrever.
Florisa: Eu assino, já
disse. Só me deixa em paz!
Caio: Passa amanhã, às
16 horas, no escritório do meu advogado e a gente acerta tudo lá. Seja
discreta, viu, se é que isso é possível para uma mulher da sua laia.
Florisa: Eu vou.
Caio: E vai se
acostumando com este trapo que você tá usando também. Eu ainda vou te ver uma
mendiga esmolando na rua. Eu certamente te darei um chute ao passar por você.
Transtornada Florisa
sai do apartamento e vai para uma janela do prédio. Tira a aliança do dedo.
Florisa: Adeus
disco-voador!
Joga a aliança.
OITAVO ATO
Cena
1
Florisa, Mariana e
Daniela na faculdade.
Florisa: Por que depois
de toda a revolução do comportamento ainda continuamos a ser humilhadas como
nos tempos de nossas avós?!
Mariana: Pior é que
parece que agora a cafajestagem foi naturalizada.
Daniela: Antes, era
institucionalizada. A corda sempre quebra na parte mais fraca.
Florisa: Tantas coisas
mudaram para continuar no fundo tudo igual?
Mariana: Ai, amiga!
Florisa: Ainda temos
que abdicar de nossas vidas por causa de convenções sociais de natureza
moralista.
Mariana: O patriarcado
só se tornou mais dissimulado.
Florisa: Como nós,
mulheres, podemos aceitar estes valores conservadores?! E eu era tão arrogante por estar ao lado do Caio!
Mariana: As mulheres,
às vezes, são as piores.
Florisa: A “sociedade”
– as classes médias e altas, mas também não excluo toda a sociedade – é como
uma panela de pressão cheia de ódio, esperando um único tropeço, para explodir.
As pessoas, que antes eram benevolentes com você, agora lançam olhares de desprezo.
Esperam você dar as costas para fazerem os comentários mais maldosos, onde
adjetivos ferinos ocupam posições sintaticamente calculadas, para te destruir.
São sempre os mesmos falsos moralistas, os primeiros a apontar o dedo
inquisitório, cobrando moral. É tanta hipocrisia.
Daniela: Sua história,
Florisa, está parecendo uma trama emaranhada de um romance desses que a gente
lê para aula.
Florisa: Sim, é a minha
história, Daniela, que está sendo escrita, agora, por mim. A história de uma
mulher casada que ou se entregava à paixão, ou a sufocava por dentro; ou se
libertava de um casamento artificial, ou aturava obstinadamente um marido que
não ama, para se tornar depois uma pessoa tão amargurada quanto as que agora a
condenam. Resta saber como minhas memórias seriam lidas por mim lá na frente,
no futuro.
Mariana: Eu confesso,
Florisa, que jamais pensei que você seria capaz.
Florisa: Eu também,
amiga; eu também!
Daniela: Florisa, o
Caio te bateu?
Florisa: Me apertou
tanto o braço que ficaram estes hematomas.
Mariana: Meu Deus,
Florisa! Ninguém o questionou por isso. Todos estão do lado dele. Como se ele
tivesse o direito de fazer o que quiser e ainda por cima te agredir.
Florisa: Ele só não me
bateu porque temia as consequências. Mas me ameaçou a dar um soco. Eu fiquei
com muito medo. Ele falou coisas horríveis. Me xingou. Gritou comigo de um
jeito que eu nunca pensei. Eu achei que ia acontecer o pior. Foi tão rude, tão
grosseiro.
Mariana: Quem diria...
Florisa: Mas suas
tentativas de me ofender doeram mais do que se ele tivesse me batido. Não
porque me atingiram, mas porque revelou o que ele realmente pensava e o que eu
realmente significava para ele.
Daniela: Ele era tão
carinhoso com você.
Florisa: Ele só era
carinhoso porque eu fazia tudo o que ele queria, porque eu aceitava tudo o que
ele fazia. Só por isso ele era carinhoso: porque eu o obedecia e o achava o
máximo. Eu me curvava condescendente sob o domínio de seu olhar superior de
aprovação. Paternal, ele não dizia uma única palavra, apenas me ouvia a lhe dar
satisfações, convencido da minha dependência. E eu achava que eu só tinha
importância ao lado dele. Os seus carinhos eram uma recompensa.
Daniela: Mas você dizia
que o amava...
Florisa: As palavras,
às vezes, são como bolhas de sabão reluzentes, perfeitas, que saem aos
borbotões com um leve assopro. Mas basta um leve tocar em sua superfície para
elas se desmancharem em infinitas partículas e desaparecerem efêmeras. Eu era
como uma criança encantada com o meu mundo vazio e oco. Quanto ao Caio, ele
apenas cumpria um ritual, porque isso lhe era conveniente. Se ele me amasse de
verdade, não levaria a vida que levava.
Mariana: Ele ficou com
o orgulho ferido.
Florisa: E eu, que não
tinha o direito sequer de suspeitar. E meu orgulho, Mariana? Se ele chegava de
madrugada, era reunião que atrasava. Eu engolia. Se ele desligava o celular,
estava tratando de negócios importantes. Eu engolia. Ou seja, eu tinha que
engolir tudo calada.
Mariana: É ficar sempre
na dúvida é muito ruim mesmo.
Florisa: Eu sei como
são os homens. Tenho amigos que namoram e saem com outras mulheres. Eles contam
isso como uma vantagem, conquistas que são contabilizadas nas conversas de mesa
de bar. Quando eles estão juntos, entre amigos, nem parecem nossos homens. Como
verdadeiros cafajestes, tratam as mulheres de modo depreciativo, como se fossem
objetos sem vontade e disponíveis a seu bel-prazer.
Daniela: Nós mulheres
passamos por situações tão embaraçosas.
Florisa: Mas, para
eles, somos as namoradinhas perfeitas, apaixonadas, comportadas. E o pior é que
a gente se dispõe a isso. Para agradar ou sei lá o quê!
Mariana: Nem me fale.
Florisa: Se a gente faz
qualquer coisa de “errado” [faz aspas com os dedos], tipo, encher a cara ou
olhar para um cara, eles dizem em tom de reprimenda: Se dê ao respeito! Sim,
porque nós somos as namoradinhas, estamos do lado certo. Mas que respeito?
Respeito a eles?! Então porque eles não nos respeitam!
Daniela: Tudo conversa
fiada. É só para nos amarrar aos seus pés.
Florisa: Eles podem
tudo! Enquanto nós ficamos em casa, bem guardadas, invulneráveis a maus juízos,
eles saem com outras mulheres ou mesmo prostitutas. Depois eles as ofendem.
Tratam-nas como se não fossem pessoas dignas. Como se não fossem eles os
verdadeiros canalhas! É tudo tão invertido. É uma situação tão aviltante para
nós mulheres.
Mariana: Divide e
governa: Amor ou sexo!
Daniela: Mente ou
corpo. Por que não podemos também ser inteiras?
Florisa: Controle ou
segregação.
Mariana: Descriminação
ou discriminação!
Florisa: E o pior é que
a gente incorpora isso como se fosse natural. Por exemplo: se passa um cara
bonito, se estamos sozinhas, sequer olhamos para ele. Parece que a sombra dos
nossos homens está colada em nosso corpo. Eles nem precisam estar ao nosso lado,
vigiam através da nossa própria autovigilância. Nossa obediência cega vai nos
cerceando pouco a pouco.
Mariana: Como numa cama
de Procusto, vamo-nos modelando...
Florisa: Se isso é
amor, eu não quero ser amada nem amar...
Daniela: Passamos a
viver a vida deles, atadas a estes laços sufocantes: o amor!
Florisa: Porém, com
eles, tudo é diferente, Daniela. Se eles estão sozinhos e passa uma mulher
bonita, eles não apenas olham como se puderem tentam seduzi-la. Jamais pensam
em nós e jamais deixam de fazer o que querem. Não se dão ao “respeito” [faz
aspas com o dedo] que nós devemos a nós mesmas.
Mariana: Ai, verdade!
Florisa: Seguimos
cegamente aquilo que esperam de nós. Transformamos os nossos homens em um deus.
Prestamos homenagens a eles, por livre e espontânea vontade. Pagamos tributos,
sem sermos cobradas diretamente para isso. Apenas servimos. Esta é a palavra,
“servir”, com todas as denotações e conotações que lhe cabem. Uma servidão
voluntária em que, no final da história, somos totalmente espoliadas e
descartadas. Ah! histórias de príncipes e gatas borralheiras deviam ser
proibidas.
Daniela: Ficamos tão
entretecidas com o fato de nos sentirmos protegidas...
Florisa: Somos fortes,
Daniela, não precisamos de proteção.
Mariana: Encontrar a
pessoa certa... talvez...
Florisa: Não, não faz
diferença classe social, região, estilo de vida, raça. Eu tenho um tio que se
faz de super liberal. Sabe, aquele cara cabeludo, de barba, gente boa; toca sax
numa banda de jazz, é super hiper descolado; sempre tentando ser espirituoso,
inteligente, “sensível” [faz aspas com o dedo]... Enfim... Recentemente,
descobrimos que ele tinha uma amante e até um filho fora do casamento.
Mariana: Os
inteligentes são os mais hipócritas, os mais ardilosos. Eles sempre enxergam a
verdade onde não conseguimos ver. Sempre estão convencidos que estão com a
razão e que nós devemos ser ensinadas.
Florisa: Mariana, e se
um homem atraente der em cima de você, o que você faria?
Mariana: Digo que sou
comprometida.
Florisa: Será que seu
noivo faria o mesmo se uma mulher bonita desse em cima dele?
Mariana: Não sei. Acho
que, talvez, não.
Florisa: Mas, se você
sair com esse homem atraente, o que vão dizer de você?
Mariana: No mínimo, vão
me chamar de vaca.
Florisa: O que seu
noivo faria?
Mariana: Me dava um pé
na bunda.
Florisa: Mas, e se ele
sair com a tal garota...
Mariana: Os amigos vão
o cumprimentar e as minhas amigas manterão segredo.
Florisa: E o que você
faria se soubesse?
Mariana: Perdoaria.
Daniela: Tá vendo! A
diferença no comportamento de gêneros é tão determinante, amigas, que
incorporamos um script que é uma verdadeira camisa de força. Vejam o meu
exemplo. O que eu fiz? Eu contei tudo para o Caio. Podia agir como ele e manter
em segredo o meu caso com o Dylan. Mas fui mulher. Aceitei intimamente o que a
sociedade espera de mim. Apenas passei a coleira de um para outro. Não
suportaria dividir meu amor.
Mariana: Será o nosso
destino?
Daniela: Sermos a outra
ou a oficial?
Florisa: Não, não pode
ser! Não podemos viver nossa vida em função deles. Podemos mudar essa sina
horrível.
Mariana: Não sei
como...
Florisa: Nós mulheres
não somos atributos dos homens, não somos seus predicados. Podemos ser sujeitos
também. Vivemos até agora sob o regime do medo, sob uma cultura opressiva que
deduz a priori nossa inferioridade. Não está certo.
Daniela: A linha que
separa o certo e o errado é muito tênue.
Florisa: O que eu quero
dizer, Daniela, é que o modelo masculino não é o ideal a ser seguido. Nem
tampouco o feminino. Os dois devem ser questionados, devem ser alterados. É
inacreditável que em pleno século XXI, as mulheres, que obtiveram tantas
conquistas na vida pública, ainda são verdadeiras escravas na esfera privada,
dentro de nossas casas!
Daniela: Por que uma
mulher inteligente tem que se submeter aos caprichos de um homem medíocre, só
para não ficar solteira?
Mariana: É melhor ficar
solteira.
Florisa: Nenhuma mulher
tem de se submeter aos caprichos de um homem medíocre tampouco de um homem
inteligente.
Mariana: Claro!
Florisa: No fundo, em
qualquer um dos casos, a última palavra é sempre a dele. Chega um momento que a
palavra não é mais palavra. É violência, pura e simplesmente. Violência verbal.
Violência simbólica. Violência física. Mas é sempre violência. As prerrogativas
da liberdade e do poder masculino nascem da violência, não de uma lógica
racional, justa e coerente.
Mariana: A lei do mais
forte. A lei da selva.
Florisa: Mas isso não
justifica vivermos como na idade da pedra!
Daniela: Fisicamente
somos mais fracas. Se fossemos da classe das aranhas, em que as fêmeas são mais
fortes, tudo seria diferente. Lançaríamos a nossa teia nas pretensões de
dominação masculina!
Florisa: Só há
dominação quando há obediência. E quando acreditamos que isso é legítimo. Mas
não vivemos mais sob a égide das leis naturais. Superamos suas determinações.
Inventamos a cultura. E a cultura não precisa ser um reflexo da natureza, isto
é, da lei dos mais fortes fisicamente. Cultura é justamento o contrário da
força bruta; nisso reside a sua força.
Mariana: Você tem
razão, amiga. Tudo conspira contra nós. Não podemos mais viver assim.
Daniela: Verdade.
Florisa: O que eu estou
questionando é a relação de poder, a relação desigual entre homens e mulheres,
os papéis sociais. Todos os dias temos provado que somos tão ou mais capazes do
que eles. Sim, há e haverá resistência, eles vão resistir, mas não podemos
desistir...
Mariana: Você fez tudo
isso por causa do Dylan. Por amor. Eu admiro tanto a sua coragem, amiga.
Florisa: Eu fiz tudo
isso por amor. Mas não fiz por causa do Dylan. Eu fiz isso por mim. Amo o
Dylan. Mas fiz isso por mim. Pela minha vida. Porque não aguentava mais tanto
fingimento. De ter que ser o que eu não sou nem quero ser e viver uma vida de
renúncias, privações, mentiras.
Mariana: Ainda assim,
por isso mesmo, admiro sua coragem.
Florisa: Eu estou
livre, Mariana. Eu me libertei! E eu estou muito feliz.
Daniela: A felicidade é
o fio de esperança em um labirinto. Não podemos soltá-lo...
Cena
2
Florisa volta para a
casa dos pais.
Lili: Eu sabia que isso
tudo não ia terminar bem. Esta história de voltar a estudar... Com sua idade eu
estava grávida de seu irmão e você já brincava pela sala. Você está com quase
29. Daqui a pouco você nem pode ter mais filhos.
Florisa: Filhos, com o
Caio? Me poupe, mamãe!
Lili: Filha,
reconsidere tudo isto, peça perdão a ele, diga que foi um deslize, aconteceu
sem querer, que você estava drogada, prometa que tal estupidez não vai mais
acontecer.
Florisa: Mãe, o Caio
não tem caráter!
Lili: E qual é o homem
que tem caráter? O mundo não funciona assim. Eu sei o que estou falando.
Florisa: Eu espero que
o pai dos meus filhos tenha ao menos caráter.
Lili: Bobagem. Não se
avalia alguém pelo que ele não tem e, sim, por coisas palpáveis.
Florisa: Como por
exemplo...
Lili: Como uma carteira
recheada de dinheiro! Isso, sim, é mensurável...
Florisa: Mamãe!
Lili: Não me venha com
rodeios, a diferença entre um homem pobre e um rico é que você vai tomar
bordoada do mesmo jeito. A diferença é que do rico você desconta no cartão de
crédito.
Florisa: Que absurdo,
mãe! Prefiro ficar solteirona.
Lili: O mundo é injusto
com as mulheres, filha. A mulher solteira tem que se superar. Ainda que ela
seja melhor do que todos os homens, nunca será reconhecida. Sempre vai ter um
homem que é melhor que ela.
Florisa: Mãe, escuta, o
Caio não tem caráter.
Lili: E daí? Caráter
não mata a fome de ninguém. Florisa, é preciso ser pragmático.
Florisa: Não consigo.
Lili: E esse molambo
que você arrumou...
Florisa: O Dylan?
Lili: Trocar ouro por
lata.
Florisa: Mamãe, eu nem
sei se o Dylan vai ficar comigo.
Lili: Ser menosprezada
por um indigente, um delinquente, um pé de chinelo... Oh, filha, a que ponto
que você chegou!
Florisa: Quem disse que
ele é delinquente?
Lili: Quem?! O seu
marido.
Florisa: Ex, mamãe.
Ex-marido!
Lili: Ex-marido que o
seja. Marido e ex-marido é tudo a mesma porcaria.
Florisa: Ele não é um
delinquente.
Lili: Um marginal! Um
desclassificado!
Florisa: Ai, ai! Para!
Não fale assim do cara que eu amo.
Lili: Em que buraco
esse rato mora? Ele pelo menos tem um colchão para dormir?
Florisa: Ele mora num
carro.
Lili: Trailer você quis
dizer.
Florisa: Não. Um carro.
Um carro velho.
Lili: O que te deu na
tua cabeça? Ao invés de amadurecer, você regrediu? Quer dizer que você saiu de
um apartamento de cinco dormitórios para ir morar num carro velho?
Florisa: Quem me dera
morar com o Dylan...
Lili: Quantas vezes eu
já vi esta história de um amor e uma cabana. Sabe como termina? A mulher
lavando louça, lavando roupa no tanque, cuidando dos filhos, sustentando a
família, e o marido chegando bêbado em casa, cheirando a perfume de mulher, e
ainda dando uma corsa na coitada porque a coitada queimou o feijão...
Florisa: Mamãe, assim
você me deprime.
Lili: Só estou tentando
abrir seus olhos. Reconsidere...
Florisa: O Dylan é
diferente.
Lili: No começo todos
são diferentes. Quando nos apaixonamos por um idiota qualquer, não queremos
repetir os mesmos erros dos nossos pais, então achamos que o nosso traste é
diferente, que é especial, que é nosso herói, que vai nos salvar da
mediocridade da vida, e todas essas baboseiras de apaixonados narcisistas. De
repente, descobrimos que aquele cara tão especial não passava de um boçal! Mas,
aí, já é tarde. Ah, Deus, que história mais vulgar! Quantas vezes eu vi isso se
repetir. Comigo não foi diferente.
Florisa: Seja como for,
eu não estava feliz com o Caio.
Lili: Felicidade é um
conceito relativo, mocinha.
Florisa: Na verdade, me
sentia sozinha com ele.
Lili: Espero muito que
você não pague por sua leviandade. O mundo é assim, nunca mudou, nem vai mudar.
NONO ATO
Cena
1
Mariana e Florisa na
faculdade.
Mariana: Florisa, fui
ao bar do Jairo e ele me disse que faz um tempão que o Dylan não aparece por
lá.
Florisa: E você não
sabe a loucura que eu fiz. Fui até onde o Dylan deixava o carro e perguntei
sobre ele para os vigias. Ai, que vergonha!
Mariana: E o que eles
disseram?
Florisa: Que ele não
estaciona o carro ali há algumas semanas.
Mariana: Talvez, não
havia nada que o prendia aqui. (...) Desculpa, Florisa! Eu quis dizer que ele
não levava a sério a faculdade e, por isso...
Florisa: Não há o que
se desculpar, eu entendi o que você quis dizer.
Mariana: Será que ele
percebeu o estrago que ele fez e foi embora?
Florisa: Acho que sim.
Mariana: Não chora,
amiga.
Florisa: Ele nunca mais
vai voltar e eu não tenho nenhuma recordação dele.
Mariana: Talvez, foi
melhor assim. Você não amava o Caio: águas passadas. Mas o Dylan é muito
irresponsável, muito imaturo.
Dylan: É que dá um
aperto no coração. Ele nem se despediu.
Mariana: Há males que
vêm pra bem. Você vai encontrar um cara que não esteja nos extremos, como seu
ex e o Dylan.
Florisa: Agora, só me
resta o consolo mesmo. Mas eu quero o Dylan. Vontade de gritar! Se ele me
ouvisse...
Mariana: Florisa, você
é a garota mais louca que eu já conheci. Se apaixonar pelo Dylan? Tá, ele é
bonito. Mas é muito, muito, muito maluco!
Florisa: Um único olhar
dele, Mariana, e bastava, um único olhar, para eu passar a semana toda feliz.
Cena 2
Ao entardecer, Florisa
está sentada no banco da praça no campus da universidade. Dylan chega por trás
e venda os olhos dela com as mãos.
Dylan: Adivinha quem
é?!
Florisa: Dylan?!
Dylan: Acertou em
cheio!
Florisa: Onde você
estava?
Dylan: Na biblioteca.
Florisa: Você na
biblioteca?
Dylan: Fui renovar o
empréstimo deste livro.
Florisa: “Anna
Karenina”?
Dylan sorri.
Florisa: Dylan, você já
reprovou por faltas.
Dylan: Estou lendo
porque eu quero. Não gosto de deixar nada pela metade.
Florisa: Onde você
estava nesse tempo todo?
Dylan: Por aí. Pelo
mundo.
Florisa: Você fugiu de
mim?
Dylan: Eu tentei.
Florisa: Você voltou
pra mim?
Dylan: É provável...
Florisa: Provável?
Dylan: As formiguinhas,
sempre aqui! Veja. Pra lá e pra cá. Sempre.
Florisa: É tão
agradável ficar aqui.
Dylan: Sabia que nessa
praça eu desenvolvi a minha filosofia de vida?
Florisa: Desde quando
você é filósofo, Dylan? Você sempre me fazendo rir.
Dylan: Você está me
subestimando?
Florisa: Não, é que não
consigo te enxergar como um pensador. Talvez um escritor underground, mas
filósofo?!
Dylan: Já ouviu falar
de Diógenes, o cínico.
Florisa: Não.
Dylan: Pois saiba que
foi um grande filósofo.
Florisa: Um filósofo
cínico? Que coisa horrível.
Dylan: Cínico nada mais
é do que cachorro. Você conhece algum ser mais fiel e leal do que um cachorro?
Florisa: Não, mas...
Qual é a sua filosofia de vida?
Dylan: A minha ou do
Diógenes.
Florisa: A sua.
Dylan: A minha filosofia
começa com uma pergunta: Sabe qual é a diferença entre estas formigas e os
seres humanos?
Florisa: Não.
Dylan: Apenas uma
diferença de grau. Enquanto elas são –inho, nós somos –ão.
Florisa: Dylan, como
você quer que eu não dê risada das coisas que você fala?!
Dylan: Não subestime o
valor filosófico dessa sentença. No fundo, somos tão pequenos como elas. Diante
do Universo, também somo –inhos; somos seres microscópicos, invisíveis, diante
da perspectiva solar.
Florisa: Tenho que
discordar, meu Sócrates...
Dylan: Diógenes, o cão.
Florisa: Claro.
Diógenes, o cão.
Dylan: Vamos, me diga,
qual é a sua antítese? Tenho sérias dúvidas que você possa refutar uma verdade
evidente por si mesma.
Florisa: As formigas
nascem operárias, soldados, rainhas, e assim permanecem. Elas nunca podem
mudar. Uma vez operárias, sempre operárias. Nós seres humanos não. Nós podemos
mudar, mesmo que a mudança nos pareça um grande desatino.
Dylan: Não me parece
muito relevante solarmente, sair da condição de operárias para nos matarmos
como soldados. Da escala solar, nossos dramas são irrisórios, pouco importam.
Florisa: E se nós nos
transformássemos em mariposas?
Dylan: Aí poderíamos
voar, moça.
Florisa: Você não quer
voar?
Dylan: Sim, quero. Mas
não me convenceu de todo. Porém, vou considerar sua observação. Ela me parece
concernente em alguns pontos. Mas ainda assim, tudo é tão pequeno... Voar na
fina atmosfera terrestre, tendo por referência a escala infinita do Universo?
Não faz tanta diferença assim. Mas se isto faz sentido para você, devo dizer
que céu é realmente muito bonito.
Os dois ficam em
silêncio, sorrindo, por alguns instantes, olhando a paisagem.
Florisa: Dylan, você
gosta de mim?
Dylan: Gosto.
Florisa: Não digo um
simples gostar. Mas um gostar como eu gosto de você.
Dylan: E como você
gosta de mim?
Florisa: É um mais que
gostar.
Dylan: Se é mais que
gostar então não é gostar, embora o gostar ainda está lá. Eu posso gostar da
cor azul e ter muitas coisas azuis. Assim, o mais gostar é menos gostar. O mais
diminui o gostar. E, no entanto, do menos surge um superlativo. Neste caso, o
não é sim.
Florisa: Dylan, você me
quer?
Dylan: Quero.
Florisa: Mas não é um
simples querer. É um mais do que querer.
Dylan: Idem. É um
querer que não é querer mas é um bem querer. Isso não me parece muito original,
mocinha. Fique sabendo que eu passei em Literatura Portuguesa. Todavia o
terceiro querer não é um querer e, sim, a união dos dois. Um paradoxo? Outra
vez o mais é menos que é mais, e o não é sim. Posso querer uma fruta, ao acaso,
em uma fruteira: um simples querer. Mas, este seu querer, é mais do que uma
simples escolha. O que é?
Florisa: É o querer que
eu te quero.
Dylan: Boa. Você me
pegou. Uma redundância! Demos uma volta inteira para voltar ao mesmo lugar.
Você nada me explica, apesar de dizer tudo.
Florisa: Você me ama,
Dylan?
Dylan: Amor não é uma
palavra bonita, do ponto de vista sonoro. Tem muito “o”.
Florisa: É bonita, sim,
e, do ponto de vista sonoro, só tem um “o”.
Dylan: Digo, ponto de
ouvido. Sim, mas um “o” que não é um “o” e sim um “O”. No caso, é sílaba
tônica. “Mô”. Não me soa agradável.
Florisa: Qual palavra é
bonita para você?
Dylan: Soledade.
Saudade.
Florisa: É bonita. Mas
amor também é. Você nunca disse “eu te amo” para alguém?
Dylan: Nunca. Esta palavra
foi riscada do meu dicionário.
Florisa: Como você
pode, Dylan? Então você não me ama!
Dylan: Não com a
palavra amor. Amor pode ter muitos significados. Muito vago. Nada diz.
Florisa: Discordo outra
vez. É uma palavra tão pequena, que não cabe em seu significado. É por isso que
economizamos letras, porque jamais conseguimos expressar toda a infinitude de
seu sentido.
Dylan: Ainda assim, sou
avesso ao amor.
Florisa: Olha: rompi
minhas algemas!
Dylan: Como eu disse,
não queria estragar seu casamento.
Florisa: Não foi você.
Fui eu. E não me arrependo de nada.
Dylan: Já que você
tocou nisso. Puxando pela minha memória, lá atrás, agora fala a verdade. Você
grudou os olhos em mim naquele dia no corredor, não foi?
Florisa: Não grudei
não.
Dylan: Florisa, você
veio na minha direção, em diagonal, e me fuzilou com os olhos. Mal pode segurar
meu olhar, cambaleante!
Florisa: Ai,
convencido!
Dylan: Eu estou aqui
com você, estamos juntos, não precisamos ter segredos. Fala a verdade.
Florisa: Eu me rendo.
Olhei, sim. E eu pensei: Uau, que gato!
Dylan: Eu lembro: eu só
vi aqueles olhões mirando diretamente em mim, cravejando!
Florisa: Você também me
olhou, espertinho. O que você pensou?
Dylan: Quando eu bati
os olhos em você, eu pensei: essa é a garota que eu sonhei a minha vida toda.
Florisa: Mentira!
Dylan: É verdade!
Florisa: Jura?!
Dylan: Juro.
Florisa: Então, diz que
me ama.
Dylan: Não precisa.
Florisa: Precisa, sim.
Eu quero ouvir. Quero ouvir a palavra amor na sua voz. Para ter certeza. Como
um selo de garantia. Senão, como é que vou entender se você não diz. Diga, por
favor.
Dylan: Poupemos
palavras, elas podem ser dissimuladas.
Florisa: Não quando
vivemos de verdade o seu significado.
Dylan: As formigas não
falam e elas se entendem muito bem.
Florisa: Formiga não
sabe falar, se soubessem, elas falariam. Mas elas se comunicam, batendo
anteninhas.
Dylan: Me pegou outra
vez. Não temos antenas...
Florisa: Então você não
me ama.
Dylan: Também não disse
isso.
Florisa: E também nunca
deu a entender que me amava.
Dylan: Não é verdade.
Eu disse, sim.
Florisa: Mentira!
Quando?
Dylan: Você também
nunca me disse.
Florisa: Como assim?
Cansei de dizer.
Dylan: Assim, assim, na
lata, diretamente, não me lembro.
Florisa: Se for por
isso, e digo agora: Dylan, eu te amo.
Dylan: Ai, o que foi
isso?!
Florisa: Seu chato!
Dylan: Senti uma
pontada, aqui, no meu peito. Verdade! Mas é uma dor que não dói.
Florisa: Agora é a sua
vez. Estou esperando.
Dylan: Eu amo você.
Florisa: Dylan, eu não
escutei, você falou muito baixo, arrastado, e sequer olhou para os meus olhos!
Dylan: Tem que olhar,
é?
Florisa: Óbvio!
Dylan: Tá bom. Como é
que se faz isso?
Florisa: Segura na
minha mão e me diz. Simples assim. Mas diga alto; diz para todo mundo escutar.
Dylan: Não tem ninguém
aqui além de nós dois.
Florisa: Não importa,
imagine que estamos num teatro. Eu quero que todo mundo saiba o que você sente
por mim. Fala, vamos, coragem!
Dylan segura nas mãos
de Florisa e olha para os seus olhos.
Dylan: Florisa, eu te
amo! Eu te amo muito.
Florisa: Dylan, meu
amor!
Os dois se beijam e
permanecem abraçados por um tempo indeterminado. Como já está quase batendo na
minha hora, eu, que agora revelo minha identidade discreta, embora, admito, sou
o autor de toda esta confusão, Eros, também conhecido por Cupido, causador do
caos, o verdadeiro amor, estou sempre disposto a conceder um pouco de alento,
um tipo de loucura, por vezes, chamada felicidade, a essa existência tão sem
sentido. Hoje minha missão foi bem cumprida e saio satisfeito, sem antes olhar
algumas vezes para trás, a minha obra: os dois que ali, de tão juntos, são
apenas um, e, de um, serão, em breve, muitos, a julgar por aqueles beijos
ardentes. Aos assistentes de palco, peço que fechem as cortinas: deixemos os
amantes à vontade, em sua intimidade. A felicidade deles é tão grande que
qualquer acréscimo é demasiado insignificante. Quanto a mim, já preparo uma
nova poção na ponta das minhas flechas, a procura de novas aventuras, um outro
alvo que pode ser bem este ou esta que está me olhando com olhos assustados e
que desvia o olhar para o vizinho. Sim, você aí, não se faça de desentendido.
Aonde pensa que vai? Ainda não acabou, não saia de fininho! Espere. Ainda há um
último ato.
DÉCIMO E ÚLTIMO ATO
Cena
final
Vinte anos depois.
Florisa e Mariana na
Faculdade.
Mariana: Quando a
Daniela me contou que você estava dando aula na faculdade em que nós estudamos
eu não pude deixar de vir correndo para cá te visitar.
Florisa: É tão estranho
estar do outro lado. Quando entro na sala de aula, nunca consigo deixar de nos
ver sentadas, uma ao lado da outra, sempre juntas, na primeira fileira.
Mariana: Fiquei sabendo
que você e o Dylan estão juntos! Eu fiquei tão surpresa e feliz.
Florisa: Sim, nós
estamos juntos! Veja. Tivemos três filhas. A mais velha já está na fase
pré-vestibular. Quase nem consigo acreditar. É tão rápido!
Mariana: A primeira é
cara do Dylan, as outras duas parecem você. E ele, afinal, acabou se formando?
Florisa: O Dylan
continua o Dylan, Mariana, e espero que ele continue sempre assim, o Dylan
simplesmente. Não. Ele não se formou. Abriu uma oficina na garagem de casa onde
presta serviços de manutenção, jardinagem, eletricista, vende roupas usadas,
livros, enfim, virou uma espécie de faz-tudo. Diz que não suporta escritório,
ambientes fechados, bancos etc. Mas o principal é que ele cuida de casa. Ah, o
Dylan descobriu um talento incrível para escrever poesia! Sou suspeita para
falar, mas ele tem uma mão cheia, viu.
Mariana: Verdade?
Florisa: Sim!
Mariana: E a sua mãe?
Florisa: Minha mãe está
bem. Depois que ela se conformou com minha separação, passou a adorar o Dylan.
Claro, não foi um processo tão rápido assim.
Mariana: Que bom!
Florisa: E você casou?
Mariana: Sim. Mas não
com aquele meu noivo. Um cretino!
Florisa: Eu sempre
achei isso. Mas nunca te disse.
Mariana: Vi uma foto do
Caio numa revista.
Florisa: Depois que nós
nos separamos, ele se casou mais três vezes e se separou as três vezes. Agora
está com uma menina 30 anos mais nova. Veja que sujeitinho mais original! Mas,
para a sociedade, é um tipo de herói. As
ex-esposas, em compensação, não são sequer lembradas. Caímos em uma espécie de
ostracismo social.
Mariana: Eu sei como é.
Florisa: Entretanto,
não guardo nenhum ressentimento do Caio. No fundo, no fundo, ele sabe que
compra as pessoas. Mas só a exterioridade, não o coração. Talvez, sempre
ambicionou as aparências, as coisas, egocêntrico que é.
Mariana: Estou tão
feliz por você.
Florisa: Às vezes, eu
entro aqui no prédio da faculdade e sou invadida por uma atmosfera embriagante
daqueles dias de estudante. A sensação que eu tenho é que tudo foi um sonho.
Ainda consigo respirar o perfume embevecido do passado. É tão atual. Tão real!
Foi aqui que eu renasci. Que deixei de ser uma representação para me tornar
presença. Foi aqui, neste prédio, que escapei de um casulo de abnegação, e me
metamorfoseei em uma borboleta de asas de cera que não tem medo de voar alto,
muito alto. Foi aqui, Mariana, que eu tomei as rédeas do meu destino. Que tomei
a iniciativa pelas minhas escolhas e a recusa em ser escolhida. Às vezes, eu e
o Dylan ficamos na pracinha aqui ao lado. Eu fico escutando suas elucubrações
filosóficas sobre seres humanos e formigas. Mas o meu pensamento está longe,
discordante... O amor pode tudo mudar.
Comentários
Postar um comentário