A moreninha - Cap. 5. Jantar Conversado
5. Jantar Conversado
Ao escutar-se aquele
aviso animador que, repetido pela boca de Filipe, tinha chegado até ao gabinete
onde conversavam Augusto e Fabrício, raios de alegria brilharam em todos os
semblantes. Cada cavalheiro deu o braço a uma senhora e, par a par, se
dirigiram para a sala de jantar. Eram, entre senhoras e homens, vinte e seis
pessoas.
Coube a Augusto a
glória de ficar entre D. Quinquina, que lhe dera a honra de aceitar seu braço
direito, e uma jovem de quinze anos, cuja cintura se podia abarcar
completamente com as mãos. Um velho alemão ficava à esquerda dela e, sem
vaidade, podia Augusto afirmar que D. Clementina prestava mais atenção a ele
que aos jagodes, que, também, a falar a verdade, por seu turno mais se
importava com o copo do que com a moça.
D. Quinquina (como a
chamam suas amigas) conversa sofrível e sentimentalmente:
é meiga, terna,
pudibunda, e mostra ser muito modesta. Seu moral é belo e lânguido como seu
rosto; um apurado observador, por mais que contra ela se dispusesse, não
exitaria de classificá-la entre as sonsas. D. Clementina pertencia,
decididamente, a outro gênero: o que ela é lhe estão dizendo dois olhos vivos e
perspicazes e um sorriso que lhe está tão assíduo nos lábios, como o copo de
vinho nos do alemão. D. Clementina é um epigrama interminável; não poupa a
melhor de suas camaradas; sua vivacidade e espírito se empregam sempre em
descobrir e patentear nas outras as melhores brechas, para abatê-las na opinião
dos homens com quem pratica.
Durante as primeiras
cobertas ela dissertou maravilhosamente acerca de suas companheiras. Maliciosa
e picante, lançou sobre elas o ridículo, que manejava, e os sorrisos de
Augusto, que com destreza desafiava. As únicas que lhe haviam escapado eram D.
Quinquina, provavelmente por ficar-lhe muito vizinha, e a irmã de Filipe, que
estava defronte ou, como é moda dizer vis-à-vis.
Augusto quis provocar
os tiros de D. Clementina contra aquela menina impertinente que tão pouco lhe
agradava.
- E que pensa V. S.
desta jovem senhora que está defronte de nós? perguntou ele com voz baixa.
- Quem?... a Moreninha?...
respondeu ela no mesmo tom.
- Falo da irmã de
Filipe, minha senhora.
- Sim... todas nós
gostamos de chamá-la Moreninha. Essa...
- Acabe D. Clementina,
disse a irmã de Filipe, que, fingindo antes não prestar atenção ao que
conversavam os dois, acabava de fixar de repente na terrível cronista dois
olhares penetrantes e irresistíveis.
Parecia que uma luta
interessante ia ter lugar; as duas adversárias mostravam-se ambas fortes e
decididas, porém D. Clementina para logo recuou; e, como querendo não passar
por vencida, sorriu-se maliciosamente e, apontando para a Moreninha, disse,
afetando um acento gracejador:
- Ela é travessa como o
beija-flor, inocente como uma boneca, faceira como o pavão, e curiosa como...
uma mulher.
- Sim, tornou-lhe D.
Carolina. Preciso é que os ouvidos estejam bem abertos e a atenção bem apurada,
quando se está defronte de uma moça como D. Clementina, que sempre tem coisas
tão engraçadas e tão inocentes para dizer!... Oh! minha camarada, juro-lhe que
ninguém lhe iguala na habilidade de compor um mapa!
- Mas... D. Carolina...
você deu o cavaco?...
- Oh! não, não...
continuou a menina, com picante ironia; porém, é fato que nenhuma de nós gosta
de ser ofuscada com o esplendor de outra. Já basta de brilhar, D. Clementina; o
Sr. Augusto deve estar tão enfeitiçado com o seu espírito e talento, que
decerto não poderá toda esta tarde e noite olhar para nós outras, sem compaixão
ou desgosto; portanto, já basta... se não por si, ao menos por nós.
A cronista fez-se cor
de nácar e a sua adversária, imitando-a na malícia do sorriso e no acento
gracejador, prosseguiu ainda:
- Mas ninguém conclua
daqui que, por ofuscada, perco eu o amor que tinha ao astro que me ofuscou.
Bela rosa do jardim! teus espinhos feriram a borboleta, mas nem por isso deixarás
de ser beijada por ela!...
E assim dizendo, a
Moreninha estendeu e apinhou os dedos de sua mão direita, fez estalar um beijo
no centro do belo grupo que eles formaram e, enfim, executou com o braço um
movimento, como se atirasse o beijo sobre D. Clementina.
- Oh! disse Augusto
consigo mesmo: a tal menina travessa não é tão tola como me pareceu ainda há
pouco. E desde então começou o nosso estudante a demorar seus olhares naquele
rosto que, com tanta injustiça, tachara de irregular e feio. Prevenido contra
D. Carolina, por havê-la surpreendido fazendo-lhe uma careta, o tal Sr.
Augusto, com toda a empáfia de um semidoutor, decidiu magistralmente que a moça
tinha todos os defeitos possíveis. Coitadinho... espichou-se tão completamente,
que agora mesmo já está pensando com os seus botões: ela não será bonita!...
porém feia... isso é demais!
- Chegou muito tarde à
ilha... balbuciou D. Quinquina, como quem desejava travar conversação com
Augusto.
- Pensa deveras isso,
minha senhora?!... respondeu este, pregando nela um olhar de quem está pedindo
um sim.
- Penso... disse a moça
enrubescendo.
- Pois é precisamente
agora que eu reconheço ter chegado muito tarde ou, pelo contrário, talvez cedo
demais.
- Cedo demais?...
- Certamente... não se
chegará sempre cedo demais onde se corre algum risco?
- Aqui, portanto...
- Neste lugar,
portanto, continuou o estudante, voltando os olhos por todas as senhoras, e
apontando depois para D. Quinquina, e aqui principalmente, floresce e brilha o
prazer, mas perde-se também a liberdade de um mancebo!
Os dois foram
interrompidos para corresponder a uma longa e interminável coleção de brindes
que o alemão principiou a desenrolar, e com tanta frequência e tão pouca
fertilidade que só a Sra. D. Ana teve, por sua saúde, de vê-lo beber seis
vezes.
Enfim, cedeu um pouco a
tormenta, e D. Quinquina, que havia gostado do que lhe dissera o estudante,
continuou:
- Não quis vir com seus
colegas?
- Eu gosto de andar só,
minha senhora.
- Sempre é má e triste
a solidão.
- Mas às vezes também a
sociedade se torna insuportável... por exemplo, depois de amanhã...
- Depois de amanhã?
repetiu ela, sorrindo-se; depois de amanhã o quê?
- Minha senhora,
ouvidos que escutaram acordes, sons de harpa sonora, vibrada por ligeira mão de
formosa donzela, doem-se de ouvir o toque inqualificável da viola desafinada da
rude saloia.
- Eu não o compreendo
bem...
- Quem respirou o ar
embalsamado dos jardins, o aroma das rosas, os eflúvios da angélica, se
incomoda, se exaspera ao respirar logo depois a atmosfera grave e carregada de
miasmas de um hospital.
- Ainda o não entendi.
- Pois juro, minha
senhora, que desta vez me há de compreender perfeitamente. Digo que, vendo eu hoje dois olhos que por
sua cor e brilho se assemelham a dois belos astros de luz, cintilando em céus
do mais puro azul; que, escutando uma voz tão doce como serão as melodias dos
anjos; que, enfim, respirando junto de alguém, cujo bafo é um perfume de
delícias, depois de amanhã preferirei não ver, não ouvir e não cheirar coisa
alguma, a ver os olhos pardos e escovados ali do meu amigo Leopoldo, a ouvir a
voz de taboca rachada do meu colega Filipe e a respirar a fumaça dos charutos
de meu companheiro Fabrício.
- Ah!... exclamou outra
vez inesperadamente D. Carolina, eu creio que D. Quinquina terá finalmente
compreendido o que o Sr. Augusto tanto se empenha em lhe explicar.
- Minha prima,
atreveu-se a dizer a ingênua, modesta, medrosa e muito sonsa D. Quinquina;
minha prima, você o teria compreendido no primeiro instante, não é assim?...
- Certamente, respondeu
a mocinha, sem perturbar-se; o Sr. Augusto, além de falar com habilidade e
fogo, pôs em ação três sentidos; o que poderia também suceder era que, como
algumas costumam fazer, eu fingisse não compreendê-lo logo, para dar lugar a
mais vivas finezas, até que ele, de fatigado, dissesse tudo, sem figuras e
flores de eloquência... Ora isso quase
que aconteceu, porque os olhos, os ouvidos e o nariz do Sr. Augusto hão de
estar certamente cansados de tão excessivo trabalho!...
- Minha senhora!...
- Por desdita dele não
houve ocasião de pôr em campo um outro sentido; o gosto ficou em inação bem
contra sua vontade, não é assim, Sr. Augusto?...
- Minha prima, todos
olham para nós...
- A respeito de tato,
não direi palavra, continuou a terrível Moreninha; porque, se as mãos do Sr.
Augusto conservaram-se em justa posição, quem sabe os transes por que passariam
os pés de minha prima?... Os Srs. estão juntinhos, que com facilidade e sem
risco se podem tocar por baixo da mesa.
- Menina! exclamou a
Sra. D. Ana, com acento de repreensão.
- Minha senhora,
consinta que ela continue a gracejar, disse Augusto, meio aturdido. Além de me
dar a honra de tomar-me por objeto de seus gracejos, dá-me também o prazer de
apreciar e admirar seu espírito e agudeza.
- Agradecida! muito
agradecida! tornou o diabinho da menina, rindo-se com a melhor vontade. Eu cá
não custo tanto a compreendê-lo como minha prima; já sei o que querem de mim os
seus elogios... estou comprada, não falo mais.
Uma risada geral
aplaudiu as últimas palavras de D. Carolina; não há nada mais natural; ela era
neta da dona da casa, e, além de ser moça, é rica.
Começava então a
servir-se a sobremesa.
- E eu, apesar de amigo
e colega de Augusto, disse por fim Fabrício, endireitando- se, não posso deixar
de lastimar a Sra. D. Joaquina, pela triste conquista que acaba de fazer.
Augusto conheceu que lhe era dado o sinal de combate. Fabrício queria tomar
vingança de sua nenhuma condescendência, e, pois, preparou-se para sustentar a
luta com todo o esforço. E vendo que todos tinham os olhos nele, como que
esperando uma resposta, não hesitou:
- Obrigado, disse; nem
eu mesmo posso de mim formar outro conceito. Devo, todavia, declarar que, se me
fosse dado conhecer a ditosa mortal que conseguiu ganhar os pensamentos e o
coração do meu colega, certo que lhe eu daria meus parabéns em prosa e verso,
porque Fabrício é, sem contradição, a mais alegre e apreciável conquista!
A ironia o feriu. A
interessante Moreninha lançou sobre Augusto um olhar de aprovação e sorriu-se
brandamente; gostou de o ver manejar a sua arma favorita. Sem se explicar o
porquê, também o nosso estudante teve em muita conta aquele sorriso da menina
travessa. Fabrício continuou:
- Venha embora o
ridículo, que nem por isso poder-se-á negar que para o nosso Augusto não houve,
não há, nem pode haver amor que dure mais de três dias.
Todas as senhoras
olharam para o réu daquele horrendo crime de lesa-formosura.
Augusto respondeu:
- E o que há aí de mais
engraçado é que Fabrício tem culpa disso, porque, enfim, manda o meu destino
que eu sempre tenha andado, ande, e haja de andar em companhia dele, que, com a
maior crueldade do mundo, tira-me todos os lances, antes de três dias de amor.
Novo olhar, novo
sorriso de aprovação de D. Carolina, novo prazer de Augusto por merecê-los.
Fabrício torceu-se
sobre a cadeira e prosseguiu:
- Nada de fugir da
questão. Poder-se-ia julgar fraqueza querer de algum modo ocultar que, tanto em
prática como em teoria, o meu colega é e se preza de ser o protótipo da
inconstância.
- Eis o que ele não
pode negar, acudiram Leopoldo e Filipe, rindo-se.
- E para que negar, se
já o nosso colega afirmou que eu me prezava de ter essa qualidade?...
- Misericórdia!
exclamou uma das moças.
- É possível?!...
perguntou a avó de Filipe, com seriedade.
- É absolutamente
verdade, respondeu o estudante.
Lançou depois um olhar
ao derredor da mesa e todas as senhoras lhe voltaram o rosto. D. Quinquina
tinha nos lábios um triste sorriso. A Moreninha olhou-o com espanto, durante um
curto momento, mas logo depois soltou uma sofrível risada e pareceu ocupar-se
exclusivamente de uma fatia de pudim.
Reinou silêncio por
alguns instantes: Fabrício parecia vitorioso; Augusto estava como em
isolamento, as senhoras olhavam para ele com receio, mostravam temer encontrar
seus olhos; dir-se-ia que receavam que de uma troca de olhares nascesse para
logo o sentimento que as devesse tornar desgraçadas. Desde as fatais palavras
de Fabrício, Augusto era naquela mesa o que costumava ser um leproso na Idade
Média: - o homem perigoso, cujo contato podia fazer a desgraça de outro.
Fabrício compreendeu em
quão triste situação estava o seu adversário, e, inexperiente, se havia
deixá-lo debatendo-se em sua má posição, quis ainda mais piorá-la, e foi,
talvez, arrancá-lo dela. Fabrício, pois, fala; as senhoras embebem nele seus
olhos e o aplaudem, enquanto Augusto, servindo-se de um prato de grosso melado,
afeta prestar pouca atenção ao seu acusador.
- Sim, minhas senhoras,
é um jovem inconstante, acessível a toda as belezas, repudiando-as ao mesmo
tempo para correr atrás de outra, que será logo deixada pela vista de uma nova,
como se ele fosse a inércia da matéria, que conserva uma impressão, mas que não
a guarda senão o tempo que é gasto para um novo agente modificá-la!
- Muito bem! muito bem!
disseram algumas vozes.
- Seu coração é pétrica
abóbada de teatro, que não entende o dizer de Auber, quando soluça à flauta
ternos sons de músico discurso, pois aquela muda superfície reflete a todos e a
todos esquece com estúpida indiferença!...
- Bravo!... Fabrício
está hoje romântico! exclamou Leopoldo, apontando maliciosamente para uma
garrafa que se achava defronte do orador, e quase de todo esgotada.
- Apoiadíssimo!...
murmurou Augusto, apontando também para a garrafa.
- Mas ele deverá viver
de lágrimas, suspiros e ânsias de condenado... concluiu Fabrício.
- Bravo!... muito
bem!... bravo!...
- Peço a palavra para
responder! exclamou Augusto.
- Tem a palavra, mas
nada de maçada!
- Duas palavras, minhas
senhoras, só duas palavras.
- Sim, defenda-se,
defenda-se.
- Defender-me?... certo
que o não farei; poderia, ao contrário, acusar, mas também não quero; julgo
apenas oportuno dar algumas explicações. Minhas senhoras, debaixo de certo
ponto de vista o meu colega Fabrício disse a verdade, porque eu sou, com
efeito, o mais inconstante dos homens em negócio de amor.
- Ainda repete?!
- Mas também quem me
conhece bastante conclui que, por fim de contas, não há amante algum mais firme
do que eu.
- O senhor está
compondo enigmas.
- Não o interrompam,
deixem-no apresentar o seu programa amoroso.
- Sim, minhas senhoras,
continuou Augusto; vamos ao desenvolvimento da primeira proposição.
- Ouçam! ouçam!
- A minha inconstância
é natural, justa e, sem dúvida, estimável. Eu vejo uma senhora bela, amo-a não
porque ela é senhora... mas porque é bela; logo, eu amo a beleza. Ora, este
atributo não foi exclusivamente dado a uma só senhora, e quando o encontro em
outra, fora injustiça que eu desprezasse nesta aquilo mesmo que tanto amei na
primeira.
- Bravo!... viva o
raciocínio!
- Mais ainda. Todo o
mundo sabe que não há quem nasça perfeito. Suponhamos que eu estou na agradável
companhia de três jovens; todas são lindas; mas a primeira vence a segunda na delicadeza
do talhe, esta supera aquela na ternura do olhar e na graça dos sorrisos, e a
terceira, enfim, ganha as duas na sublime harmonia de umas bastas madeixas
negras, coroando um rosto romanticamente pálido; ora, bem se vê que seria
cometer a mais detestável injustiça se eu, por amar a delicadeza do talhe da
primeira, me esquecesse das ternuras dos olhares e da graça dos sorrisos da
segunda, assim como das bastas madeixas negras e do rosto romanticamente pálido
da última.
- Muito bem, Augusto,
exclamou Filipe. Estou achando um não sei quê tão aproveitável no teu sistema,
que me vejo em termos de segui-lo.
- Eis aqui, pois, por
que sou inconstante, minhas senhoras; é o respeito que tributo ao merecimento
de todas, é talvez o excesso a que levo as considerações que julgo devidas ao
sexo amável, que me faz ser volúvel. Agora eu entro na segunda parte da minha
explicação.
- Atenção!... ele vai
provar que é constante!...
- Antes que ninguém,
minhas senhoras, eu repreendi o meu coração pela sua volubilidade; mas vendo
que era vão trabalho querer extinguir por tal meio uma disposição que a
natureza nele plantara, pretendi primeiro achar na mesma natureza um corretivo
que o fizesse; procurei uma jovem bem encantadora para me lançar em cativeiro
eterno, mas debalde o fiz, porque eu sou tão sensível ao poder da formosura,
que sempre me sucedia esquecer a bela de ontem pela que via hoje, a qual, pela
mesma razão, era esquecida depois. Quantas vezes, minhas senhoras, nos meus
passeios da tarde, eu olvidei o amor da manhã desse mesmo dia por outro amor,
que se extinguiu no baile dessa mesma noite!...
- É exageração! disse
uma senhora.
- É exatamente assim,
acudiu Fabrício.
- Que folha d’alho!...
exclamou D. Quinquina.
- Então, minhas
senhoras, prosseguiu Augusto, eu entendi que devia recorrer a mim próprio para
tornar-me constante. Consegui-o. Sou firme amante de um objeto... mas de um só
objeto que não tem existência real, que não vive.
- Como é isto!... então
a quem ama?
- A sua sombra, como
Narciso?...
- A boneca que se vê na
vidraça do Desmarais?...
- Ao cupido de
Praxiteles, como Aquídias de Rodes?
- Alguma estátua da
Academia das Belas-Artes?...
- Nada disso.
- Então a quem?
- A todas as senhoras,
resumidas num só ente ideal. À custa dos belos olhos de uma, das lindas
madeixas de outra, do colo de alabastro desta, do talhe elegante daquela, eu
formei o meu belo ideal, a quem tributo o amor mais constante. Reúno o que de
melhor está repartido e faço mais ainda: aperfeiçoo a minha obra todos os dias.
Por exemplo, retirando- me desta ilha, eu creio que vestirei o meu belo ideal
de novas formas!
- Viva o
cumprimento!...
- Foi assim, minhas
senhoras, que eu me pude tornar constante e, graças a meu proveitoso sistema,
posso amar a todas as senhoras a um tempo sem ser infiel a nenhuma. Disse.
- Muito bem!... muito
bem!...
- Augusto
desempenhou-se.
O champagne estourava
naquele momento. Leopoldo tomou a palavra pela ordem.
- Eu vou, exclamou,
propor um belo meio de terminar esta discussão, convidando a todos os senhores
para um brinde, no qual Augusto, por castigo de sua inconstância, nos não
poderá acompanhar. Não é novo que mancebos bebam, no meio dos prazeres de um
festim, um copo de vinho depois de pronunciar o nome daquela que é dama de seus
pensamentos: aqui não estamos só mancebos e, pois, não faremos tanto;
pronunciaremos, contudo, a inicial do primeiro nome.
- Sim! sim! disse
Filipe, Augusto não beberá conosco...
- Não, maninho, acudiu
a interessante Moreninha, ele há de beber também.
- Ah, minha senhora! no
beber um copo de champagne não está a dúvida; a dificuldade toda é poder, entre
tantos nomes, escolher o mais amado. Acode-me tal número dos que têm tocado o
superlativo do amor...
- M... disse Leopoldo,
esvaziando seu copo.
- C... pronunciou
Filipe, olhando para D. Clementina.
- J... balbuciou
Fabrício, exasperado com um acesso de tosse que atacara Augusto. Os outros
mancebos pronunciaram suas letras; só o inconstante faltava.
- Eis! ânimo, Sr.
Augusto, disse D. Carolina.
- Mas que letra, minha
senhora?... se eles me dessem licença, eu faria o enorme sacrifício de reduzir
as que me lembram ao diminuto número de vinte e três.
- Nada! nada! nesta
saúde não entra o número plural.
- Pois bem, Sr.
Augusto, continuou a menina, uma coleção não deixa de ser singular; beba o seu
copo de champagne ao alfabeto inteiro!
- Sim, minha senhora,
ao alfabeto inteiro!
Meia hora depois
levantaram-se da mesa. Leopoldo aproximou-se de Augusto.
- Então que dizes,
Augusto?...
- Que passaremos a mais
agradável noite.
- E quem ganhará a
aposta?
- Eu.
- De quais destas
meninas estás mais apaixonado,...
- Estou na minha regra,
mas hoje tenho-me apaixonado só de três, principalmente.
- E o que pensas da
irmã de Filipe?
- A melhor resposta que
te posso dar, é... não sei... porque, ao meio-dia, a julgava travessa,
importuna e feia, mas era-me completamente indiferente...
- À uma hora?...
- Eu a supus estouvada
e desagradável.
- Às duas horas?...
- Má, e desejava vê-la
longe de mim.
- Durante o jantar?...
- Fui achando-lhe algum
espírito e acusei-me por havê-la julgado feia.
- E agora?
- Parece que me sinto
muito inclinado a declará-la engraçada e bonitinha.
- E daqui a pouco?
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