A moreninha - Cap. 22. Mau Tempo
22. Mau Tempo
Tristes dias têm-se
arrastado. Augusto está desesperado. Voltando da ilha de..., depois daquele
belo dia da declaração de amor, achou na Corte seu pai e em poucos momentos
teve de concluir, da severidade com que era tratado, que já alguém o havia
prevenido das suas loucuras e dos muitos pontos que ultimamente tinha dado nas
aulas. A mais bem merecida repreensão, e um discurso cheio de conselhos e
admoestações, vieram por fim dar-lhe a certeza de que o seu bom velho estava
ciente de tudo.
Para coroar a obra,
contra o costume do maior número dos nossos agricultores, que, quando vêm à
cidade, estão no caso do fogo viste linguiça? e ainda bem não puseram os pés no
Largo do Paço já têm os pés na Praia Grande (que por estes bons cinquenta anos
há de continuar a ser Praia Grande, apesar de a terem crismado Niterói), o pai
de Augusto não falava em voltar para a roça; e, a julgar-se pelo sossego e
vagar com que tratava os menos importantes negócios, parecia haver esquecido a
moagem e a safra.
Chegou o sábado. O nosso Augusto, depois de muitos rodeios e
cerimônias, pediu finalmente licença para ir passar o dia de domingo na ilha
de... e obteve em resposta um não redondo; jurou que tinha dado sua palavra de
honra de lá se achar nesse dia e o pai, para que o filho não cumprisse a
palavra, nem faltasse à honra, julgou muito conveniente trancá-lo no seu
quarto.
Mania antiga é essa de
querer triunfar das paixões com fortes meios; erro palmar, principalmente no
caso em que se acha o nosso estudante; amor é um menino doidinho e malcriado,
que, quando alguém intenta refreá-lo, chora, escarapela, esperneia, escabuja,
morde, belisca e incomoda mais que solto e livre; prudente é facilitar-lhe o
que deseja, para que ele disso se desgoste; soltá-lo no prado, para que não
corra; limpar-lhe o caminho, para que não passe: acabar com as dificuldades e
oposições, para que ele durma e muitas vezes morra. O amor é um anzol que,
quando se engole, agadanha-se logo no coração da gente, donde, se não é com
jeito destravado, por mais força que se faça mais o maldito rasga, esburaca e
se profunda. Portanto, muita indústria deve ter quem o quer pôr na rua, e para
consegui-lo convém ir despedindo-o com bons modos, parlamentares oferecimentos
e nunca bater-lhe com a porta na cara. Porém os homens, mal passam de certa
idade, só se lembram do seu tempo para gritar contra o atual e esquecem
completamente os ardores da mocidade. O resultado disso é o mesmo que tirará o
pai de Augusto da energia e violência com que procura apagar a paixão do filho.
Já era tarde. Augusto
ama deveras, e pela primeira vez em sua vida; e o amor, mais forte que seu
espírito, exercia nele um poder absoluto e invencível. Ora, não há ideias mais
livres que as do preso; e, pois, o nosso encarcerado estudante soltou as velas
da barquinha de sua alma, que voou atrevida por esse mar imenso da imaginação:
então, começou a criar mil sublimes quadros e em todos eles lá aparecia a
encantadora Moreninha, toda cheia de encantos e graças; viu-a, com seu vestido
branco, esperando-o em cima do rochedo; viu-a chorar, por ver que ele não
chegava, e suas lágrimas queimavam-lhe o coração. Ouviu-a acusá-lo de
inconstante e ingrato; daí a pouco pareceu-lhe que ela soluçava, escutou um
grito de dor semelhante a esse que soltara no primeiro dia que ele tinha
passado na ilha! Aqui, foi o nosso estudante às nuvens; saltou exasperado fora
do leito em que se achava deitado, passeou a largos passos por seu quarto,
acusou a crueldade dos pais, experimentou se podia arrombar a porta, fez mil
planos de fuga, esbravejou, escabelou-se e, como nada disso lhe valesse, atirou
com todos os seus livros para baixo da cama e deitou-se de novo, jurando que
não havia de estudar dois meses. Carrancudo e teimoso, mandou voltar o almoço,
o jantar e a ceia que lhe trouxeram, sem tocar num só prato; e sentindo que seu
pai abria a porta do quarto, sem dúvida para vir consolá-lo e dar-lhe salutares
conselhos, voltou o rosto para a parede e principiou a roncar como um
endemoninhado.
- Já dormes, Augusto?
perguntou o bom pai, abrindo as cortinas do leito.
A única resposta que
obteve foi um ronco que mais assemelhou-se a um trovão.
O experimentado velho
fingiu ter-se deixado enganar e, retirando-se, trancou a porta ao pobre
estudante.
Uma noite de amargor
foi, então, a que se passou para este; na solidão e silêncio das trevas, a alma
do homem que padece é, mais que nunca, toda de sua dor; concentra-se,
mergulha-se inteira em seu sofrimento, não concebe, não pensa, não vela e não
se exalta se não por ele. Isto aconteceu a Augusto, de modo que, ao abrir-se na
manhã seguinte a porta do quarto, o pai veio encontrá-lo ainda acordado, com os
olhos em fogo e o rosto mais enrubescido que de ordinário.
Augusto quis dar dois passos
e foi preciso que os braços paternais o sustivessem para livrá-lo de cair.
- Que fizeste, louco?
perguntou o pai, cuidadoso.
- Nada, meu pai; passei
uma noite em claro, mas... eu não sofro nada. Oh! ele queria dizer que sofria
muito!
Imediatamente foi-se
chamar um médico que, contra o costume da classe, fez-se esperar pouco.
Augusto sujeitou-se com
brandura ao exame necessário e quando o médico lhe perguntou:
- O que sente?
Ele respondeu, com toda
fria segurança do homem determinado:
- Eu amo.
- E mais nada?
- Oh! Sr. doutor, julga
isso pouco?
E além destas palavras
não quis pronunciar mais uma única sobre o seu estado. E, contudo, ele estava
em violenta exacerbação. O médico deu por terminada a sua visita. Algumas
aplicações se fizeram e um dos colegas de Augusto, que o tinha vindo procurar,
fez-lhe o que chamou uma bela sangria de braço.
A enfermidade de
Augusto não cedeu, porém, com tanta facilidade como a princípio supôs o médico;
três dias se passaram sem conseguir-se a mais insignificante melhora; uma
mudança apenas se operou: a exacerbação foi seguida de um abatimento e
prostração de forças notável; sua paixão, que também se desenhava no ardor dos
olhares, na viveza das expressões e na audácia dos pensamentos, tomou outro
tipo: Augusto tornou-se pálido, sombrio e melancólico; horas inteiras se
passavam sem que uma só palavra fosse apenas murmurada, por seus lábios,
prolongadas insônias eram marcadas minuto a minuto por dolorosos gemidos, e
seus olhos, amortecidos, como que obsequiavam a luz quando por acaso se
entreabriam. Na visita do quarto dia o médico disse ao pai de Augusto:
- Não vamos bem...
Uma ideia terrível
apareceu então no pensamento do sensível velho: a possibilidade de morrer seu
filho, a flor de suas esperanças, e tal ideia derramou em seu coração todo esse
fel, cujo amargor só pode sentir a alma de um pai; e entrou apressado e trêmulo
no quarto do enfermo, e vendo-o prostrado no leito, como insensível, como meio
morto, exclamou, com lágrimas nos olhos:
- O meu filho!... meu
filho!... por que me queres matar?
Um brando favônio de
vida passeou pelo rosto de Augusto; seus olhos se abriram, um leve sorriso de
gratidão lhe alisou os lábios, também duas lágrimas ficaram penduradas em suas
pálpebras e ele, tomando e beijando a mão paterna, murmurou com voz sumida e
terna:
- Meu pai... tão
bom!...
Doces frases que
retumbaram com mais doçura ainda no coração do velho.
- Querido louco!...
disse ele: tu me obrigas a fazer loucuras!
E saiu do quarto e logo
depois de casa, mas, voltando passadas algumas horas, entrou de novo na câmara
do doente; fez retirar todas as pessoas que aí se achavam e, ficando só com
ele, deu-lhe, provavelmente, algum elixir tão admirável, que as melhoras
começaram a aparecer como por encantamento, no mesmo instante. Que milagre não
será capaz de fazer o amor dos pais?
Novidades do mesmo
gênero perturbavam a paz e os prazeres da ilha de... D. Carolina também
padecia. Os nossos amantes acabavam de
chegar ao sentimental e, com seu sentimentalismo, estavam azedando a vida dos
que lhes queriam bem. Os namorados são semelhantes às crianças: primeiro
divertem-nos com suas momices, depois incomodam- nos choramingando.
A bela Moreninha tinha
visto romper a aurora do domingo no rochedo da gruta, e, tendo debalde esperado
o seu estudante até alto dia, voltou para casa arrufada. No almoço não houve
prato que não acusasse de mal temperado: faltava-lhe o tempero do amor; o chá
não se podia tomar, o dia estava frio de enregelar, toda a gente de sua casa a
olhava com maus olhos; seu próprio irmão tinha um defeito imperdoável: era
estudante... Pertencia a uma classe, cujos membros eram, sem exceção, sem
exceção nenhuma, (bradava ela lindamente enraivecida) falsos, maus, mentirosos
e até... feios. À tarde sentiu-se incomodada. Retirou-se, não ceou e não
dormiu.
Tudo neste mundo é mais
ou menos compensado; o amor não podia deixar de fazer parte da regra. Ele, que
de um nadazinho tira motivos para o prazer de dias inteiros, que de uma flor já
murcha engendra o mais vivo contentamento, que por um só cabelo faz escarcéus
tais, que nem mesmo a sorte grande os causaria, que por uma cartinha de cinco
linhas põe os lábios de um pobre amante em inflamação aguda com o estalar de
tantos beijos, se não produzisse também agastados arrufos, às vezes algumas
cólicas, outras amargores de boca, palpitações, ataques de hipocondria, pruído
de canelas, etc., seria tão completa a felicidade cá embaixo, que a terra
chegaria a lembrar-se de ser competidora do céu.
Um exemplo dessa regra
está sendo a nossa cara menina. Coitadinha! vai passando uma semana de ciúmes e
amarguras. Acordando-se ao primeiro trinar do canário, ela busca o rochedo, e,
com os olhos embebidos no mar, canta muitas vezes a balada de Aí, repetindo com
fogo a estrofe que tanto lhe condiz, por principiar assim:
“Eu tenho quinze anos,
E sou morena e linda.”
E quando o sol começa a
fazer-se quente, deixa o rochedo, para passar o dia inteiro no fundo do
gabinete, ou ao lado de sua boa avó, que mal pode consolá-la, porque, conhecendo
já a causa da tristeza da querida neta, teme vê-la fugir vermelha de pejo, se
não fingir com finura que ignora o estado de seu coração.
O dia de sexta-feira
trouxe ainda algumas novidades à ilha de... A Sra. D. Ana recebeu cartas que a
tornaram talvez menos triste, mas sem dúvida muito pensativa. A presença da
linda neta parecia alentar mais essas reflexões, que se prolongaram até a tarde
do dia seguinte, em que um velho e particular amigo de sua família veio da
Corte visitá-la e com a respeitável senhora ficou duas horas conferenciando a
sós.
Esse homem despediu-se,
enfim, da Sra. D. Ana, deixando-a cheia de prazer; e, no momento em que saltava
dentro do seu batel, vendo a interessante Moreninha que tristemente passeava à
borda do mar, saudou-a com esta simples palavra, apontando para o céu:
- Esperança!
D. Carolina levantou a
cabeça e viu que já o batel cortava as ondas, mas, como para corresponder a tão
animador cumprimento, ela, por sua vez, apontou também para o céu, e pondo a
outra mão no lugar do coração disse:
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