A moreninha - Cap. 11. Travessuras de D. Carolina
11. Travessuras de D. Carolina
Mas ela não para: o
movimento é a sua vida; esteve no jardim e em toda a parte; cantou de sobre o
rochedo e ei-la outra vez no jardim! Infatigável, apenas suas faces se coraram
com o rubor da agitação. Travessa menina!... Porém, ela tempera todas as
travessuras com tanta viveza, graça e espírito, que menos valera se não fizera
o que faz. Não há um só, entre todos,
der cuja alma se não tenham esvaído as ideias desfavoráveis que, à primeira vista,
produziu o gênio inquieto de D. Carolina. O mesmo Augusto não pôde resistir à
vivacidade da menina. Encontrando Leopoldo, disseram duas palavras sobre ela.
- Então, como a achas
agora?... disse Leopoldo, apontando para a irmã de Filipe.
- Interessante,
espirituosa e capaz de levar a glória ao mais destro casuísta. Olha, Fabrício
vê-se doido com ela.
- Só isso?...
- Acho-a bonita.
- Nada mais?...
- Tem voz muito
agradável.
- É tudo o que
pensas?...
- Tem a boca mais
engraçada que se pode imaginar.
- Só?...
- Muito esbelta.
- Que mais?
- É tão ligeira como um
juramento de mulher.
- Dize tudo de uma vez.
- Pois que queres que
eu diga?
- Que a amas!... que
dás o cavaco por ela.
- Amá-la? não faltava
mais nada! amo-a como amo as outras... isso sim.
- Pois meu amigo, todos
nós estamos derrotados; o diabinho da menina nos tem posto o coração em retalhos. Se, de novo, se fizer a saúde
que hoje fizemos, todos, à exceção de Filipe, pronunciarão a letra C...
- Também Fabrício?
- Ora! esse está
doente... perdido... doido, enfim!
- E ela?
- Zomba de todos nós;
cada cumprimento que lhe endereçamos paga ela com uma resposta que não tem
troco e que nos racha de meio a meio. Tu ainda não lhe disseste nada?
- Cousas vãs... e
palavras da tarifa.
- E ela?
- Palavras da tarifa...
e cousas vãs.
- Pois é opinião geral
que ela te prefere a todos nós.
- Tanto melhor para
mim.
- E pior para ela,
mas... adeus! o meu lindo par se levanta do banco de relva em que descansava;
vou tomar-lhe o braço; tenho-me singularmente divertido: a bela senhora é
filósofa!... faze ideia! Já leu Mary de Wollstonecraft e, como esta defende os
direitos das mulheres, agastou-se comigo, porque lhe pedi uma comenda para
quando fosse Ministra de Estado, e a patente de cirurgião do exército, no caso
de chegar a ser general; mas, enfim, fez as pazes, pois lhe prometi que, apenas
me formasse, trabalharia para encartar-me na Assembleia Provincial e lá, em
lugar das maçadas de pontes, estradas e canais, promoveria a discussão de uma
mensagem ao governo-geral, em prol dos tais direitos das mulheres: além de
que... Mas... tu bem vês que ela me está chamando: adeus!... adeus!...
No entanto D. Carolina
continuava a cativar todos os olhares e atenções; tinham notado, é verdade, que
ela estivera alguns momentos recostada à efígie da Esperança, triste e pensativa.
Fabrício jurava mesmo que a vira enxugar uma lágrima, mas logo depois
desapareceu completamente a menor aparência de tristeza, tornou a brilhar-lhe o
prazer em ebulição.
Todos tinham tido seu
quinhão, maior ou menor, segundo os merecimentos de cada um, nas graças
maliciosas da menina. Ninguém havia escapado: Fabrício era a vítima predileta,
porque também foi ele o único que se atreveu a travar luta com ela.
Finalmente D. Carolina
acabava de entrar outra vez no jardim, depois de ter cantado sua balada. De
todos os lados soavam-lhe os parabéns, mas ela escapou a eles, correndo para
junto de uma roseira toda coroada por suas belas e rubras flores.
Fabrício, que ainda não
estava suficientemente castigado e que, além disto, começava a gostar seu
tantum da Moreninha, se dirigiu com D. Joaninha para o lado em que ela se
achava.
- É decididamente o que
eu pensava, disse Fabrício, quando se viu ao pé de D. Carolina; e dirigindo-se
a D. Joaninha: sim... sua bela prima ama as rosas, exclusivamente.
- Conforme as ocasiões
e circunstâncias, respondeu a menina.
- Poderia eu merecer a
honra de uma explicação? perguntou Fabrício.
- Com toda a justiça e,
continuou D. Carolina rindo-se, tanto mais que foi a V. S.ª que me dirigi. Eu
queria dizer que, entre um beijo-de-frade ou um cravo-de-defunto e uma rosa,
não hesito em preferir a última.
Fabrício fingiu não
entender a alusão e continuou;
- Todavia não é sempre
bem pensada semelhante preferência; a rosa é como a beleza: encanta mais
espinha; V. S.ª o sabe, não é assim?
- Perfeitamente, mas
também não ignoro que a rosa só espinha quando se defende de alguma mão
impertinente que vem perturbar a paz de que goza; V. S.ª o sabe, não é assim?
- Oh! então a Sra. D.
Carolina foi bem imprudente em quebrar o pé dessa rosa com que brinca, expondo
assim seus delicados dedos; e bem cruel também em fazê-la murchar de inveja,
tendo-a defronte de seu formoso semblante.
- Pela minha vida, meu
caro senhor! nunca vi pedir uma rosa com tanta graça: quer servir-se dela?
- Seria a mais apetecível
glória...
- Pois aqui a tem...
Querida prima, nada de ciúmes.
E Fabrício, recebendo o
belo presente, em vez de olhar para a mão que o dava, atentava em êxtase o
rosto moreno e o sorrir malicioso de D. Carolina. Ao momento de se encontrar a
mão que dava e a que recebia, Fabrício sentiu que lhe apertavam os dedos; seu
primeiro pensamento foi crer que era amado; mas logo se lhe apagou esse raio de
vaidade, pois que ele retirou vivamente a mão, exclamando involuntariamente:
- Ai! feri-me!...
Era que a travessa lhe
havia apertado os dedos contra os espinhos da rosa. Mas a flor tinha caído na
relva: Fabrício, já menos desconcertado, a levantou com presteza, e, encarando
a irmã de Filipe, disse-lhe, em tom meio vingativo:
- Foi um combate
sanguinolento, ma ganhei o prêmio da vitória.
- Pois feriu-se?...
perguntou D. Carolina, chegando-se com fingido cuidado para ele.
- Nada foi, minha
senhora: comprei uma rosa por algumas gotas de sangue... valeu a pena.
- Maldita rosa!
exclamou a Moreninha, teatralmente... maldita rosa! eu te amaldiçoo!...
E dando um piparote na
inocente flor, a desfolhou completamente; não ficou na mão de Fabrício mais que
o verde cálice. D. Carolina correu para junto de sua digna avó; o pobre
estudante ficou desconcertado.
- E esta! murmurou ele,
enfim.
- Foi muito bem feito!
disse D. Joaninha, cheia de zelos e dando-lhe um beliscão, que o fez ir às
nuvens.
- Perdão, minha
senhora... seja pelo amor de Deus! exclamou Fabrício, que se via batido por
todos os lados.
No entanto começava a
declinar a tarde; uma voz reuniu todas as senhoras e senhores em um só ponto:
serviu-se o café num belo caramanchão; mas, como fosse ele pouco espaçoso para
conter tão numerosa sociedade, aí só se abrigaram as senhoras, enquanto os
homens se conservavam na parte de fora.
Escravas decentemente
vestidas ofereciam chávenas de café fora do caramanchão, e, apesar disse, D.
Carolina se dirigiu com uma para Fabrício, que praticava com Augusto.
- Eu quero fazer as
pazes, Sr. Fabrício; vejo que deve estar muito agastado comigo e venho
trazer-lhe uma chávena de café temperado pela minha mão.
Fabrício recuou um
passo e colocou-se à ilharga de Augusto: ele desconfiava das tenções da menina;
sua primeira ideia foi esta: o café não tem açúcar.
Então, começou entre os
dois um duelo de cerimônias, que durou alguns instantes; finalmente, o homem
teve de ceder à mulher. Fabrício ia receber a chávena, quando esta estremeceu
no pires... D. Carolina, temendo que sobre ela se entornasse o café, recuou um
pouco. Fabrício fez outro tanto: a chávena, inda mal tomada, tombou: o café
derramou-se inopinadamente. Fabrício recuou ainda mais com vivacidade, mas,
encontrando a raiz de um chorão que sombreava o caramanchão, perdeu o
equilíbrio e caiu redondamente na relva.
Uma gargalhada geral
aplaudiu o sucesso.
- Fabrício espichou-se
completamente! exclamou Filipe.
O pobre estudante
ergueu-se com ligeireza, mas, na verdade, corrido do que acabava de
sobrevir-lhe: as risadas continuavam, as terríveis consolações o atormentavam;
todas as senhoras tinham saído do caramanchão e riam-se, por sua vez,
desapiedadamente. Fabrício muito daria para ser livrar dos apuros em que se
achava, quando de repente soltou também
a sua risada e exclamou:
- Viva as calças de
Augusto!
Todos olharam. Com efeito,
Fabrício tinha encontrado um companheiro na desgraça: Augusto estava de calças
brancas, e a maior porção de café entornado havia caído nelas.
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