A moreninha - Cap. 16. O Sarau
16. O Sarau
Um sarau é o bocado
mais delicioso que temos, de telhados abaixo. Em um sarau todo o mundo tem que
fazer. O diplomata ajusta, com um copo de champanha na mão, os mais intrincados
negócios; todos murmuram e não há quem deixe de ser murmurado. O velho
lembra-se dos minuetes e das cantigas do seu tempo, e o moço goza todos os
regalos da sua época; as moças são no sarau como as estrelas no céu; estão no
seu elemento: aqui uma, cantando suave cavatina, eleva-se vaidosa nas asas dos
aplausos, por entre os quais surde, às vezes, um bravíssimo inopinado, que
solta de lá da sala do jogo o parceiro que acaba de ganhar sua partida no
écarté, mesmo na ocasião em que a moça se espicha completamente, desafinando um
sustenido; daí a pouco vão outras, pelos braços de seus pares, se deslizando
pela sala e marchando em seu passeio, mais a compasso que qualquer de nossos
batalhões da Guarda Nacional, ao mesmo tempo que conversam sempre sobre objetos
inocentes que movem olhaduras e risadinhas apreciáveis. Outras criticam de uma
gorducha vovó, que ensaca nos bolsos meia bandeja de doces que veio para o chá,
e que ela leva aos pequenos que, diz, lhe ficaram em casa. Ali vê-se um
ataviado dandy que dirige mil finezas a uma senhora idosa, tendo os olhos
pregados na sinhá, que senta-se ao lado. Finalmente, no sarau não é essencial
ter cabeça nem boca, porque, para alguns é regra, durante ele, pensar pelos pés
e falar pelos olhos.
E o mais é que nós
estamos num sarau. Inúmeros batéis conduziram da Corte para a ilha de... senhoras
e senhores, recomendáveis por caráter e qualidades; alegre, numerosa e
escolhida sociedade enche a grande casa, que brilha e mostra em toda a parte
borbulhar o prazer e o bom gosto.
Entre todas essas
elegantes e agradáveis moças, que com aturado empenho se esforçam por ver qual
delas vence em graça, encantos e donaires, certo que sobrepuja a travessa
Moreninha, princesa daquela festa.
Hábil menina é ela!
nunca seu amor-próprio produziu com tanto estudo seu toucador e, contudo,
dir-se-ia que o gênio da simplicidade a penteara e vestira. Enquanto as outras
moças haviam esgotado a paciência de seus cabeleireiros, posto em tributo toda
a habilidade das modistas da Rua do Ouvidor e coberto seus colos com as mais
ricas e preciosas joias, D. Carolina dividiu seus cabelos em duas tranças, que
deixou cair pelas costas: não quis adornar o pescoço com seu adereço de
brilhantes, nem com seu lindo colar de esmeraldas; vestiu um finíssimo, mas
simples vestido de garça, que até pecava contra a moda reinante, por não ser
sobejamente comprido. E vindo assim aparecer na sala, arrebatou todas as vistas
e atenções.
Porém, se um atento
observador a estudasse, descobriria que ela adrede se mostrava assim, para
ostentar as longas e ondeadas madeixas negras, em belo contraste com a alvura
de seu vestido branco, para mostrar, todo nu, o elevado colo de alabastro, que
tanto a formoseia, e que seu pecado contra a moda reinante não era senão um
meio sutil de que se aproveitara para deixar ver o pezinho mais bem-feito e
mais pequeno que se pode imaginar.
Sobre ela estão
conversando agora mesmo Fabrício e Leopoldo. Terminam sem dúvida a sua prática.
Não importa; vamos ouvi-los.
- Está na verdade
encantadora!... repetiu pela quarta vez aquele.
- Danças com ela?
perguntou Leopoldo.
- Não, já estava
engajada para doze quadrilhas.
- Oh! lá vai ter com
ela o nosso Augusto. Vamos apreciá-lo.
Os dois estudantes
aproximaram-se de Augusto, que acabava de rogar à linda Moreninha a mercê da
terceira quadrilha.
- Leva de tábua, disse
Fabrício ao ouvido de Leopoldo... é a mesma que eu lhe havia pedido.
Mas a jovenzinha pensou
um momento antes de responder ao pretendente; olhou para Fabrício e com
particular mover de lábios pareceu mostrar-se descontente; depois riu-se e
respondeu a Augusto:
- Com muito prazer.
- Mas, minha senhora,
disse Fabrício, vermelho de despeito e aturdido com um beliscão que lhe dera
Leopoldo; há cinco minutos que já estava engajada até a duodécima.
- É verdade, tornou D.
Carolina; e agora só acabo de ratificar uma promessa: o Sr. Augusto poderá
dizer se ontem pediu-me ou não a terceira contradança?
- Juro... balbuciou
Augusto.
- Basta! acudiu
Fabrício interrompendo-o; é inútil qualquer juramento de homem, depois das
palavras de uma senhora.
Fabrício e Leopoldo
retiraram-se; D. Carolina, que tinha iludido o primeiro, vendo brilhar o prazer
na face de Augusto, e temendo que daquela ocorrência tirasse este alguma
explicação lisonjeira demais, quis aplicar um corretivo e, erguendo-se, tomou o
braço de Augusto. Aproveitando o passeio, disse:
- Agradeço-lhe a
condescendência com que ia tomar parte na minha mentira... foi necessário que
eu praticasse assim; quero antes dançar com qualquer, do que com aquele seu
amigo.
- Ofendeu-lhe, minha
senhora?
- Certo que não, mas...
diz-me coisas que não quero saber.
- Então... que diz
ele?...
- Fala tantas vezes em
amor...
- Meu Deus! é um crime
que eu tenho estado bem perto de cometer!
- Pois bem, foi esta a
única razão.
- Mas eu temo perder a
minha contradança... alguns momentos mais e serei réu como Fabrício.
- A culpa será de seus
lábios.
- Antes dos seus olhos,
minha senhora.
- Cuidado, Sr. Augusto!
lembre-se da contradança!
- Pois será preciso
dizer que a detesto?...
- Basta não dizer que
me ama.
- É não dizer o que sinto,
eu... não sei mentir.
- Ainda há pouco ia
jurar falso...
- Nas palavras de um
anjo ou de uma...
- Acabe.
- Tentaçãozinha.
- Perdeu a terceira
contradança.
- Misericórdia! eu não
falei em amor!...
Neste momento a
orquestra assinalou o começo do sarau. É
preciso antecipar que nós não vamos dar ao trabalho de descrever este, é um
sarau, como todos os outros, basta dizer o seguinte:
Os velhos lembraram-se
do passado, os moços aproveitaram o presente, ninguém cuidou do futuro. Os
solteiros fizeram por lembrar-se do casamento, os casados trabalharam por
esquecer-se dele. Os homens jogaram, falaram em política e requestaram as
moças; as senhoras ouviram finezas, trataram de modas e criticaram
desapiedadamente umas das outras. As filhas deram carreirinhas ao som da
música, as mães, já idosas, receberam cumprimentos por amor daquelas, e, as
avós, por não ter que fazer nem que ouvir, levaram todo o tempo a endireitar as
toucas e comer doce. Tudo esteve debaixo destas regras gerais, só resta dar
conta das seguintes particularidades:
D. Carolina sempre
dançou a terceira contradança com Augusto, mas, para isso, foi preciso que a
Sra. D. Ana empenhasse todo o seu valimento; a tirana princesinha da festa
esteve realmente desapiedada; não quis passear com o estudante.
A interessante D.
Violante fez o diabo a quatro: tomou doze sorvetes, comeu pão de ló, como
nenhuma, tocou em todos os doces, obrigou alguns moços a tomá-la por par e até
dançou uma valsa de corrupio.
Augusto apaixonou-se
por seis senhoras com quem dançou; o rapaz é incorrigível. E assim tudo mais.
Agora são quatro horas
da manhã; o sarau está terminado, os convidados vão retirando-se e nós,
entrando no toilette, vamos ouvir quatro belas conhecidas nossas, que conversam
com ardor e fogo.
- É possível?!... exclamou
D. Quinquina, dirigindo-se à sua mana; pois é verdade que esse Sr. Augusto lhe
fez uma declaração de amor?...
- Como quer que lhe
diga, maninha?... Asseverou que meus olhos pretos davam à sua alma mais luz do
que a seus olhos todos os candelabros da sala nesta noite, e mesmo do que o
sol, nos dias mais brilhantes... palavras dele.
- Que insolente!...
tornou D. Quinquina; ele mesmo, que me jurou ser a mais bela a seus olhos e a
mais cara a seu coração, porque meus cabelos eram fios d’ouro e a cor das minhas
faces o rubor de um belo amanhecer!... palavras dele.
- Que atrevido!...
bradou D. Clementina; o próprio que afirmou ser-lhe impossível viver sem
alentar-se com a esperança de possuir-me, porque eu sabia ferir corações com
minhas vistas e curar profundas mágoas com meus sorrisos!... palavras dele.
- Oh! que moço
abominável!... disse, por sua vez, D. Gabriela; e ousou dizer-me que me amava
com tão subida paixão que, se fora por mim amado e pudesse desejar e pedir
algum extremo, não me pediria como as outras, para beijar-me a face, porque das
virgens do céu somente se beija os pés, e de joelhos!... palavras dele.
- Mais isto é um
insulto feito a todas nós!
- Como se estará ele
rindo!...
- Qual! se ele está
apaixonado!...
- Apaixonado?!... E por
quem?
- Por nós quatro...
talvez por outras mais... ele pensa assim.
- Que maldito
brasileiro com alma de mouro!...
- E havemos de ficar
assim?...
- Não, acudiu D.
Joaninha, vamos ter com ele, desmascaremo-lo.
- Isto é nada para quem
não tem vergonha!...
- Pois troquemos os
papéis: finjamos que estávamos tratadas para desafiar-lhe os requebros...
ridicularizemo-lo como for possível.
- Sim... obriguemo-lo a
dizer qual de nós é a mais bonita. Cada uma lhe pedirá um anel de seus
cabelos... uma prenda... uma lembrança... ponhamo-lo doido...
- Muito bem pensado!
vamos!
- Deus nos livre! à
vista de tanta gente!...
- Então, quando e onde?
- Uma ideia!... seja a
zombaria completa: escreva-se uma carta anônima, convidando-o para estar ao
romper do dia na gruta.
- Bravo! então
escreva...
- Eu não, escreva
você...
- Deus me defenda!...
escreva, D. Gabriela, que tem boa letra...
- Então, nenhuma
escreve.
- Pois tiremos por
sorte!
A ideia foi recebida
com aprovação e a sorte destinou para secretária D. Clementina que, tirando de
seu álbum um lápis e uma tira de papel, escreveu sem hesitar:
“Senhor: - Uma jovem
que vos ama e que de vós escutou palavras de ternura, tem um segredo a
confiar-vos. Ao raiar da aurora a encontrareis no banco de relva da gruta; sede
circunspecto e vereis a quem, por meia hora ainda, quer ser apenas - Uma
incógnita.”
- Bem... disse D.
Quinquina, eu me encarrego de fazer-lhe receber a carta. Saiamos. As quatro
moças iam sair, quando um suspiro as suspendeu; mais alguém estava no toilette.
D. Joaninha, medrosa de que uma testemunha tivesse presenciado a cena que se
acabava de passar, voltou-se para o fundo do gabinete e o susto para logo se
dissipou.
- Vejam como ela
dorme!... disse.
Com efeito, recostada
em uma cadeira de braços, D. Carolina estava profundamente adormecida.
A Moreninha se
mostrava, na verdade, encantadora no mole descuido de seu dormir: à mercê de um
doce resfolegar, os desejos se agitavam entre seus seios; seu pezinho bem à
mostra, suas tranças dobradas no colo, seus lábios entreabertos e como por
costume amoldados àquele sorrir cheio de malícia e de encanto que já lhe
conhecemos e, finalmente, suas pálpebras cerradas e coroadas por bastos e
negros supercílios, a tornavam mais feiticeira que nunca.
D. Clementina não pôde
resistir a tantas graças; correu para ela... dois rostos angélicos se
aproximaram... quatro lábios cor-de-rosa se tocaram e este toque fez acordar D.
Carolina.
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