A moreninha - Cap. 17. Foram Buscar Lã e Saíram Tosquiadas
17. Foram Buscar Lã e Saíram Tosquiadas
Se houve alguém que
quisesse servir a D. Quinquina ou se foi ela mesma quem pôs a carta anônima no
bolso da jaqueta de Augusto, é coisa que pouco interesse dá; o certo é que o
estudante, indo tirar o lenço para assoar-se, achou o interessante escritinho;
então correu logo para um lugar solitário, e só depois de devorar o convite sem
assinatura foi que lembrou-se que ainda não se havia assoado e que o pingo
estava cai não cai na ponta do nariz; enfim, ainda com o lenço acudiu a tempo,
e depois entendeu que, para melhor decidir o que lhe cumpria fazer naquela
conjuntura, deveria avivar o cérebro, sorvendo uma boa pitada de rapé.
Portanto, lançou a mão ao segundo bolso de sua jaqueta, e eis que lhe sai com a
caixa do bom Princesa um outro escritinho como o primeiro.
- Bravo! exclamou o
nosso estudante; temíveis mãozinhas seriam estas, se se dessem ao exercício não
de encher, mas de vazar as algibeiras da gente.
E sem mais dizer, abriu
e leu o escrito.
“Senhor: - Uma moça,
que nem é bonita nem namorada, mas que quer interessar-se por vós, entende
dever prevenir-vos que no banco de relva da gruta não achareis ao amanhecer uma
incógnita, porém sim conhecidas, que pretendem zombar de vós, porque esta mesma
noite jurastes amar a cada uma delas em particular. Não procureis adivinhar
quem vos escreve, porque, apesar de ser vossa amiga, serei por agora - Uma
incógnita”
- Muito bonito! muito
bonito!... disse Augusto beijando o bilhete; estou exatamente representando um
papel de romance! mas quem sabe se ainda acharei mais cartas?...
E nisto pensando, foi
correndo um por um todos os bolsos dos seus vestidos, sem esquecer o do
relógio, e até passou os dedos por sua basta cabeleira, presumindo que talvez
introduzissem algum no enorme canudo de cabelo que lhe escondia as orelhas.
Porém, nada mais havia;
também duas cartas tão curiosas já eram de sobra em uma só noite.
O estudante pensou no
conteúdo de ambas e ainda reflexionava se lhe cumpria fugir ou aceitar um
certame com quatro moças, que ele adivinha quais eram, quando a primeira rosa
da aurora se desabriu no horizonte. Augusto correu para a gruta encantada.
Chegando ao pé, foi de
mansinho se aproximando, sentiu o rumor e ouviu que alguém dizia em tom baixo:
- Oh! se ele vier!
- Ei-lo aqui, minhas
belas senhoras, exclamou o estudante, que entendeu não lhes dever nunca dar
tempo a tomar a ofensiva; eis-me aqui!...
As moças, que estavam
todas sentadinhas no banco de relva, como quatro pombas- rolas enfiladas no
mesmo galho, ergueram-se sobressaltadas ao ver entrar inopinadamente o
estudante; era isso mesmo o que ele queria, pois continuou:
- As senhoras veem que
acudi de pronto ao honroso convite e que me entusiasmo vendo quatro auroras, em
lugar de uma só! Belo amanhecer é este, sem dúvida... mas, exposto ao fogo abrasador
de oito olhos brilhantes... eu me sinto arder... juro que tenho sede... Eis ali
uma fonte... Mas, meu Deus, é a fonte encantada que descobre os segredos de
quem está conosco!... Bem! bem! melhor... uma gota desta linfa de fadas!...
- O que é que ele está
dizendo, mana? exclamou D. Quinquina, apontando para Augusto, que tinha entre
os lábios o copo de prata.
- É preciso decidir-nos
a começar, disse D. Gabriela.
- Principie você, disse
D. Joaninha.
- Eu não, comece
você...
- Eu não, que sou a
mais moça...
Então o estudante, que
tinha acabado de esgotar o seu copo d’água, voltou-se para elas, e dando a seu
rosto uma expressão animada e às suas palavras estudado acento:
- Começo eu, minhas
senhoras, disse, e começo por dizer-vos que aquela fonte é realmente encantada;
sim, eu tenho, à mercê de sua água, adivinhado belos segredos: escutai vós...
Perdoai e consenti que vos trate assim, enquanto vos falar inspirado por um
poder sobrenatural. Vós viestes aqui para maltratar-me e zombar de mim, por
haver amado a todas vós numa só noite; que ingratidão!... eu vos poderia
perguntar como o poeta:
Assim se paga a um
coração amante?!
- Mas, desgraçadamente,
a fada que preside àquela fonte, quer mais alguma coisa ainda e me dá uma cruel
missão! ordena-me que eu diga a cada uma de vós, em particular, algum segredo
do fundo de vossos corações, para melhor provar os seus encantamentos. Pois bem, é preciso obedecer; qual de vós
quer ser a primeira?... Eu não ouso falar alto, porque pelo jardim talvez
estejam passeando alguns profanos. Qual de vós quer ser a primeira?...
Nenhuma se moveu.
- Será preciso que eu
escolha? continuou o tagarela. Escolherei... Iluminai-me, boa fada! Quem
será?... Será... a... Sra. D. Gabriela.
- Eu?! respondeu a
menina, recuando.
- A senhora mesma,
disse Augusto, trazendo-a pela mão para junto da fonte; vinde, senhora, para
bem perto do lugar encantado; agora silêncio... ouvi.
- Ele está mangando
conosco, murmurou D. Clementina. Augusto já estava falando em voz baixa a D.
Gabriela.
- Vós, senhora, ainda
não amastes a pessoa alguma; para vós amor não existe: é um sonho apenas; só
olhais como real a galanteria; vós quereis zombar de mim, porque vos protestei
os mesmos sentimentos que havia protestado a mais três companheiras vossas e,
todavia, estais incursa em igual delito, pois só por cartas vos correspondeis
com cinco mancebos.
- Senhor!...
- Oh! não vos
impacienteis; quereis provas?... Há quatro dias, uma vendedeira de empadas, que
se encarrega de vossas cartas, enganou-se na entrega de duas; trocou-as e deu,
se bem me lembra a fada, a de lacre azul ao Sr. Juca e a de lacre verde ao Sr.
Joãozinho.
- Ora... ora, senhor!
quem lhe contou essas invenções?
- A fada! e fez mais
ainda. Vós não achareis em vosso álbum o escrito desesperado do Sr. Joãozinho,
que vos foi entregue no momento de vossa partida para esta ilha; sou eu que o
tenho, a fada mo deu há pouco com sua mão invisível.
- Impossível! balbuciou
D. Gabriela, recorrendo ao seu álbum. Ela não podia encontrar o escrito.
- Sr. Augusto, disse
então, toda vergonha e acanhamento; eu lho rogo que me dê esse papel.
- Pois não quereis
ouvir mais nada?...
- Basta o que tenho
ouvido e que não posso bem compreender; mas dê-me o que lhe pedi.
- Daqui a pouco,
senhora, na hora de minha partida para a Corte, porém, com uma condição.
- Pode dizê-la.
- Sois sobremaneira
delicada, senhora; este excesso vos deve ser nocivo; quereis fazer-me o
obséquio de ir descansar e dar-me a honra de aceitar a minha mão até à porta da
gruta?...
- Com muito prazer.
Então os dois se
dirigiram para fora; passando junto das três companheiras, D. Gabriela pôde
apenas dizer-lhes:
- Até logo.
Chegando à porta,
Augusto falou já em outro tom:
- Minha senhora, espero
que me faça a justiça de crer que fico extremamente penalizado por não poder
dilatar por mais tempo a glória de acompanhá-la; mas sabe o que ainda tenho de
fazer.
- Obrigada, respondeu
D. Gabriela, não poupe as outras. Não é possível bem descrever a admiração das
três.
Augusto chegou-se a D.
Quinquina, e tomando-lhe a mão, disse:
- Minha senhora, é
chegada vossa vez.
D. Quinquina deixou-se
levar para junto da fonte; as moças tinham perdido toda a força; o que diante
delas se passava pedia uma explicação que não estava ao seu alcance dar.
Augusto começou:
- Senhora, eu poderia
dizer-vos, pelo que me conta a boa fada, que vós sois como as outras de vossa
idade, tão volúveis como eu; mas para tal saber não precisava eu beber da água
encantada; podia também gastar meia hora em falar-vos do vosso galanteio com um
tenente da Guarda Nacional, por nome Gusmão...
- Senhor!...
- Por nome Gusmão, que
leva o seu despotismo amoroso ao ponto de exigir que não valseis, que não
tomeis sorvetes, que não deis dominus tecum quando ao pé de vós espirrar algum
moço e que não vos riais quando ele estiver sério.
- Quem lhe disse isso,
senhor?...
- A fada, senhora; e
ainda me disse mais: por exemplo, contou-me que no baile desta noite, passeando
com um velho militar, vós recebestes da mão dele um lindo cravo e a seus olhos
o escondestes, com gesto apaixonado, no palpitante seio; mas daí a um quarto de
hora essa mesma flor, tão ternamente aceita, deveria ir parar no bolso de um
belo jovem, chamado Lúcio, se acaso não fosse roubada pela fada que preside
esta fonte.
- Eu não entendo nada
do que o senhor está dizendo... isso não é comigo.
- Eu me explico: o Sr.
Lúcio viu ser dado e recebido o presente e, fingindo-se zeloso, vos pediu esse
cravo, muito notável, porque, além da flor aberta, havia sete flores em botão.
Ora, dizei, não é verdade? Pois o Sr. Lúcio queria esse cravo, mas vós lho não
podíeis dar, porque o velho militar não tirava os olhos de vós; ora,
conversando com o Sr. Lúcio, acordastes ambos que ele iria esperar um instante
no jardim e que um pequeno escravo, por nome Tobias, lhe levaria a flor; e como
o tal Tobias ainda não conhecia o Sr. Lúcio, este lhe daria por senha as
seguintes palavras: sete botões; não foi assim?
D. Quinquina guardou
silêncio; tudo era verdade; ela estava cor de nácar. Augusto prosseguiu:
- Isto se passou
estando vós na grande varanda, sentados em um banco e com as costas voltadas
para uma janela da sala do jogo; ora, a fada esteve recostada a essa janela,
ouviu quanto dissestes e, como lhe é dado tomar todas as figuras, tomou a de
moço, foi ao jardim, e quando viu o Tobias, disse sete botões; e o cravo foi
logo da fada e é agora meu, ei-lo aqui!...
- Isto é uma invenção;
eu não conheço essa flor.
- Bem! então
consentireis que eu a traga esta manhã no meu peito?... Se não confessais, eu a
mostrarei... O senhor coronel ainda se não retirou e...
- Perdoe-me, balbuciou,
enfim, D. Quinquina, deixando cair uma lágrima na mão de Augusto. Dê-me esse
maldito cravo.
- Eu vo-lo darei na
hora de minha partida, senhora, porém, ouvi mais.
- Basta.
- Pois bem, basta; mas
eu vejo que vossa face está umedecida; seria uma lágrima se o relento da noite
não molhasse também a rosa. Quereis descansar, sem dúvida; poderei gozar o
prazer de conduzir-vos até à porta da gruta?...
- Sim, senhor.
Duas guerreiras tinham
sido batidas; só a curiosidade retinha as outras: Augusto se chegou para elas e
falou a D. Clementina:
- Agora nós, senhora.
Ela deixou-se levar
pela mão até junto da fonte, e o estudante começou:
- Quereis fatos de
anteontem ou da noite passada, senhora?
- Eu não entendo o que
o senhor quer dizer.
- Pergunto, senhora, se
vos dá gosto que eu vos repita o que convosco se passou, quando tomáveis um
sorvete ao lado de um jovem de cabelos negros... o que convosco conversou o meu
colega Filipe, quando tomáveis chá?
- Eu não preciso saber
nada disso.
- Então dir-vos-ei o
que mais vos interessa, sossegarei mesmo os vossos cuidados e os do Sr. Filipe,
a respeito da perda de certo objeto...
- Sr. Augusto!...
- Senhora, foi a fada
desta misteriosa fonte quem vos roubou um precioso embrulho que continha uma
trança de vossos cabelos e que deveria ser achado embaixo da quarta roseira da
rua que vai ter ao caramanchão, e essa trança para, hoje, em minhas mãos, ei-la
aqui...
- Oh! dê-ma.
- Não preferis antes
que eu a entregue ao feliz para quem a destináveis?
- Não, eu lhe peço que
ma dê.
- Eu estou pronto a
obedecer-vos, senhora, mas só na hora de minha partida. Vós quatro queríeis
zombar de mim; não concebo até onde iria a vossa vingança; preciso de reféns
que assegurem a paz entre nós; estes são meus; quereis saber mais alguma coisa?
- Eu já sei que o
senhor sabe demais!
- Então...
- Quer, como as duas
primeiras, oferecer-me a mão e obrigar-me a desamparar o campo?
- Venceu, senhor, e sou
eu que lhe peço que me acompanhe até à porta da gruta.
- Eu estou pronto,
senhoras, para servir-vo em tudo. Só restava D. Joaninha, era a vez dela.
- Eu vos deixei para o
fim, disse Augusto, porque a vós é que eu mais admiro, porque vós sois
exatamente a única dentre elas que tem amado melhor e que mais infeliz tem
sido, eu vos explicarei isto. Sois, todavia, um pouco excessiva em
exigências...
- Que quer dizer, Sr.
Augusto?
- Que quereis muito,
quando ordenais a um estudante que vos escreva quatro vezes por semana, pelo
menos; que passe por defronte de vossa casa quatro vezes por dia; que vá a
miúdo ao teatro e aos bailes que frequentais, e até que não fume charutos de
Havana nem de Manilha, por ser falta de patriotismo.
- Quem lhe disse isso,
senhor!?
- A fada, senhora, que
sabe que amais a um moço, a quem dais a honra de chamar querido primo.
- É uma vil traição!
- Exatamente diz o
mesmo a nossa boa fada, e ainda mais, senhora: quer que eu vos aconselhe a que
desprezeis esse jovem infiel, que não sabe pagar o vosso amor: eu poderia
dar-vos provas...
- Não as tenho eu
bastante, exclamou D. Joaninha com sentimento, quando lhe ouço repetir o que
deveria ser sabido dele e de mim somente?
Augusto ia falar; ela o
interrompeu.
- Senhor, eu agradeço o
benefício que recebi; o senhor quis zombar de mim, como das outras, mas não o
fez; ao contrário, atalhou em princípio uma grande enfermidade, que, talvez,
fosse daqui a pouco tempo incurável! Eu galanteio também às vezes, porém, sei
amar até o extremo. Adeus, senhor! eu posso apenas agradecer-lhe, dizendo que
tenho tanta confiança na sua discrição e no seu caráter, que nem mesmo lhe
recomendo o cuidado do meu segredo.
D. Joaninha ia deixar a
gruta; Augusto lhe ofereceu o braço.
- Agradecida, disse
ela; permita que eu entre só em casa.
Augusto ficou só.
Esteve alguns momentos lembrando-se da cena que acabava de ter lugar;
finalmente disse, soltando uma risada:
- Vieram buscar lã e
saíram tosquiadas!
E já estava para pôr o
pé fora da gruta, quando uma voz branda e sonora o suspendeu, dizendo:
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