A moreninha - Cap. 1. Aposta Imprudente
1. Aposta Imprudente
Bravo! exclamou Filipe,
entrando e despindo a casaca, que pendurou em um cabide velho. Bravo!...
interessante cena! mas certo que desonrosa fora para casa de um estudante de Medicina e já no sexto ano, a não valer-lhe
o adágio antigo: - o hábito não faz o monge.
- Temos discurso!...
atenção!... ordem!... gritaram a um tempo três vozes.
- Coisa célebre!
acrescentou Leopoldo. Filipe sempre se torna orador depois do jantar...
- E dá-lhe para fazer
epigramas, disse Fabrício.
- Naturalmente, acudiu
Leopoldo, que, por dono da casa, maior quinhão houvera no cumprimento do
recém-chegado; naturalmente. Bocage, quando tomava carraspana, descompunha os
médicos.
- C’est trop fort!
bocejou Augusto, espreguiçando-se no canapé em que se achava deitado.
- Como quiserem, continuou
Filipe, pondo-se em hábitos menores; mas, por minha vida, que a carraspana de
hoje ainda me concede apreciar devidamente aqui o meu amigo Fabrício, que
talvez acaba de chegar de alguma visita diplomática, vestido com esmero e
alinho, porém, tendo a cabeça encapuzada com a vermelha e velha carapuça do
Leopoldo; este, ali escondido dentro do seu robe-de-chambre cor de burro quando
foge, e sentado em uma cadeira tão desconjuntada que, para não cair com ela,
põe em ação todas as leis de equilíbrio, que estudou em Pouillet; acolá, enfim,
o meu romântico Augusto, em ceroulas, com as fraldas à mostra, estirado em um
canapé em tão bom uso, que ainda agora mesmo fez com que Leopoldo se lembrasse
de Bocage. Oh! VV. SS. tomam café!... Ali o senhor descansa a xícara azul em um
pires de porcelana... aquele tem uma chávena com belos lavores dourados, mas o
pires é cor-de-rosa... aquele outro nem
porcelana, nem lavores, nem cor azul ou de rosa, nem xícara... nem pires...
aquilo é uma tigela num prato...
- Carraspana!...
carraspana!...
- Ó moleque! prosseguiu
Filipe, voltando-se para o corredor, traze-me café, ainda que seja no púcaro em
que o coas; pois creio que a não ser a falta de louças, já teu senhor mo teria
oferecido.
- Carraspana!...
carraspana!...
- Sim, continuou ele,
eu vejo que vocês...
- Carraspana!...
carraspana!...
- Não sei de nós quem
mostra...
- Carraspana!...
carraspana!...
Seguiram-se alguns
momentos de silêncio; ficaram os quatro estudantes assim a modo de moças quando
jogam o siso. Filipe não falava, por conhecer o propósito em que estavam os
três de lhe não deixar concluir uma só proposição, e estes, porque esperavam
vê-lo abrir a boca para gritar-lhe: carraspana!...
Enfim, foi ainda Filipe
o primeiro que falou, exclamando de repente:
- Paz! paz!...
- Ah! já?... disse
Leopoldo, que era o mais influído.
- Filipe é como o
galego, disse um outro; perderia tudo para não guardar silêncio uma hora.
- Está bem, o passado,
o passado; protesto não falar mais nunca na carapuça, nem nas cadeiras, nem no
canapé, nem na louça do Leopoldo... Estão no caso... sim...
- Hein?... olha a
carraspana.
- Basta! vamos a
negócio mais sério. Onde vão vocês passar o dia de Sant’Ana?
- Por quê?... temos
patuscada?... acudiu Leopoldo.
- Minha avó chama-se
Ana.
- Ergo!...
- Estou habilitado para
convidá-los a vir passar a véspera e dia de Sant’Ana conosco na ilha de...
- Eu vou, disse
prontamente Leopoldo.
- E dois, acudiu
Fabrício. Augusto só guardou silêncio.
- E tu, Augusto?...
perguntou Filipe.
- Eu?... eu não conheço
tua avó.
- Ora, sou seu criado;
também eu não a conheço, disse Fabrício.
- Nem eu, acrescentou
Leopoldo.
- Não conhecem a avó;
mas conhecem o neto, disse Filipe.
- E demais, tornou
Fabrício, palavra de honra que nenhum de nós tomará o trabalho de lá ir por causa
da velha.
- Augusto, minha avó é
a velha mais patusca do Rio de Janeiro.
- Sim?... que idade
tem?
- Sessenta anos.
- Está fresquinha
ainda... Ora... se um de nós a enfeitiça e se faz avô de Filipe!...
- E ela, que possui
talvez seus duzentos mil cruzados, não é assim, Filipe? Olha, se é assim, e tua
avó se lembrasse de querer casar comigo, disse Fabrício, juro que mais depressa
daria o meu “recebo a vós” aos cobres da velha, do que a qualquer das nossas
“toma-larguras” da moda.
- Por quem são!... deixem
minha avó e tratemos da patuscada. Então tu vais, Augusto?
- Não.
- É uma bonita ilha.
- Não duvido.
- Reuniremos uma
sociedade pouco numerosa, mas bem escolhida.
- Melhor para vocês.
- No domingo, à noite,
teremos um baile.
- Estimo que se
divirtam.
- Minhas primas vão.
- Não as conheço.
- São bonitas.
- Que me importa?...
Deixe-me. Vocês sabem o meu fraco e caem-me logo com ele: moças!... moças!...
Confesso que dou o cavaco por elas, mas as moças me têm posto velho.
- É porque ele não
conhece tuas primas, disse Fabrício.
- Ora... o que poderão
ser senão demoninhas, como são todas as outras moças bonitas?
- Então tuas primas são
gentis?... perguntou Leopoldo a Filipe.
- A mais velha,
respondeu este, tem dezessete anos, chama-se Joana, tem cabelos negros, belos
olhos da mesma cor, e é pálida.
- Hein?... exclamou
Augusto, pondo-se de um pulo duas braças longe do canapé onde estava deitado,
então ela é pálida?...
- A mais moça tem um
ano de menos: loura, de olhos azuis, faces cor-de-rosa... seio de alabastro...
dentes...
- Como se chama?
- Joaquina.
- Ai, meus pecados!...
disse Augusto.
- Vejam como Augusto já
está enternecido...
- Mas, Filipe, tu já me
disseste que tinhas uma irmã.
- Sim, é uma moreninha
de quatorze anos.
- Moreninha? diabo!...
exclamou outra vez Augusto, dando novo pulo.
- Está sabido...
Augusto não relaxa a patuscada.
- É que este ano já
tenho pagodeado meu quantum satis, e, assim como vocês, também eu quero andar
em dia com alguns senhores com quem nos é muito preciso estar de contas justas
no mês de novembro.
- Mas a pálida?... a
loura?... a moreninha?...
- Que interessante
terceto! exclamou com tom teatral Augusto; que coleção de belos tipos!... uma
jovem de dezessete anos, pálida... romântica e, portanto, sublime; uma outra,
loura... de olhos azuis... faces cor-de-rosa... e... não sei que mais: enfim,
clássica e por isso bela. Por último uma terceira de quatorze anos...
moreninha, que, ou seja, romântica ou clássica, prosaica ou poética, ingênua ou
misteriosa, há de, por força, ser interessante, travessa e engraçada; e por
consequência qualquer das três, ou todas ao mesmo tempo, muito capazes de fazer
de minha alma peteca, de meu coração pitorra!... Está tratado... não há
remédio... Filipe, vou visitar tua avó. Sim, é melhor passar os dois dias
estudando alegremente nesses três interessantes volumes da grande obra da
natureza do que gastar as horas, por exemplo, sobre um célebre Velpeau, que só
ele faz por sua conta e risco mais citações em cada página do que todos os
meirinhos reunidos fizeram, fazem e hão de fazer pelo mundo.
- Bela consequência! É raciocínio o teu que faria inveja a um
calouro, disse Fabrício.
- Bem raciocinado...
não tem dúvida, acudiu Filipe; então, conto contigo, Augusto?
- Dou-te palavra... e
mesmo porque eu devo visitar tua avó.
- Sim... já sei... isso
dirás tu a ela.
- Mas vocês não têm
reparado que Fabrício tornou-se amuado e pensativo, desde que se falou nas
primas de Filipe?...
- Disseram-me que ele
anda enrabichado com minha prima Joaninha.
- A pálida?... pois eu
já me vou dispondo a fazer meu pé-de-alferes com a loura.
- E tu, Augusto,
quererás porventura requestar minha irmã?...
- É possível.
- E de que gostarás
mais, da pálida, da loura ou da moreninha?...
- Creio que gostarei,
principalmente, de todas.
- Ei-lo aí com a sua
mania.
- Augusto é
incorrigível.
- Não, é romântico.
- Nem uma coisa nem
outra... é um grandíssimo velhaco.
- Não diz o que sente.
- Não sente o que diz.
- Faz mais do que isso,
pois diz o que não sente.
- O que quiserem...
Serei incorrigível, romântico ou velhaco, não digo o que sinto não sinto o que
digo, ou mesmo digo o que não sinto; sou, enfim, mau e perigoso e vocês
inocentes e anjinhos. Todavia, eu a ninguém escondo os sentimentos que ainda há
pouco mostrei, e em toda a parte confesso que sou volúvel, inconstante e
incapaz de amar três dias um mesmo objeto; verdade seja que nada há mais fácil
do que me ouvirem um “eu vos amo”, mas também a nenhuma pedi ainda que me desse
fé; pelo contrário, digo a todas o como sou e, se, apesar de tal, sua vaidade é
tanta que se suponham inesquecíveis, a culpa, certo, que não é minha. Eis o que
faço. E vós, meus caros amigos, que blasonais de firmeza de rochedo, vós jurais
amor eterno cem vezes por ano a cem diversas belezas... vós sois tanto ou ainda mais inconstantes que
eu!... mas entre nós há sempre uma grande diferença: - vós enganais e eu
desengano; eu digo a verdade e vós, meus senhores, mentis...
- Está romântico!...
está romântico!... exclamaram os três, rindo às gargalhadas.
- A alma que Deus me
deu, continuou Augusto, é sensível demais para reter por muito tempo uma mesma
impressão. Sou inconstante, mas sou feliz na minha inconstância, porque
apaixonando-me tantas vezes não chego nunca a amar uma vez.
- Oh!... oh!... que
horror!... que horror!...
- Sim! esse sentimento
que voto às vezes a dez jovens num só dia, às vezes, numa mesma hora, não é
amor, certamente. Por minha vida, interessantes senhores, meus pensamentos
nunca têm dama, porque sempre têm damas; eu nunca amei... eu não amo ainda...
eu não amarei jamais...
- Ah!... ah!... ah!...
e como ele diz aquilo!
- Ou, se querem,
precisarei melhor o meu programa sentimental; lá vai: afirmo, meus senhores,
que meu pensamento nunca se ocupou, não se ocupa, nem se há de ocupar de uma
mesma moça quinze dias.
- E eu afirmo que
segunda-feira voltarás da ilha de... loucamente apaixonado de alguma de minhas
primas.
- Pode bem suceder que
de ambas.
- E que todo o resto do
ano letivo passarás pela rua de... duas e três vezes por dia, somente com o fim
de vê-la.
- Assevero que não.
- Assevero que sim.
- Quem?... eu?... eu
mesmo passar duas e três vezes por dia por uma só rua, por causa de uma
moça?... e para quê?... para vê-la lançar-me olhos de ternura, ou sorrir-se
brandamente quando eu para ela olhar, e depois fazer-me caretas ao lhe dar as
costas?... para que ela chame as
vizinhas que lhe devem ajudar a chamar-me tolo, pateta, basbaque e
namorador?... Não, minhas belas senhoras da moda! eu vos conheço... amante
apaixonado quando vos vejo, esqueço-me de vós duas horas depois de deixar-vos.
Fora disto só queimarei o incenso da ironia no altar de vossa vaidade; fingirei
obedecer a vossos caprichos e somente zombarei deles. Ah!... muitas vezes,
alguma de vós, quando me ouve dizer: “sois encantadora”, está dizendo consigo:
“ele me adora”, enquanto eu digo também comigo: “que vaidosa!”
- Que vaidoso!... te
digo eu, exclamou Filipe.
- Ora, esta não é
má!... Então vocês querem governar o meu coração?...
- Não; porém, eu torno
a afirmar que tu amarás uma de minhas primas todo o tempo que for da vontade
dela.
- Que mimos de amor que
são as primas deste senhor!...
- Eu te mostrarei.
- Juro que não.
- Aposto que sim.
- Aposto que não.
- Papel e tinta,
escreva-se a aposta.
- Mas tu me dás muita
vantagem e eu rejeitaria a menor. Tens apenas duas primas; é um número de
feiticeiras muito limitado. Não sejam só elas as únicas magas que em teu favor
invoques para me encantar. Meus sentimentos ofendem, talvez, a vaidade de todas
as belas; todas as belas, pois, tenham o direito de te fazer ganhar a aposta,
meu valente campeão do amor constante!
- Como quiseres, mas
escreve.
- E quem perder?...
- Pagará a todos nós um
almoço no Pharoux, disse Fabrício.
- Qual almoço! acudiu
Leopoldo. Pagará um camarote no primeiro drama novo que representar o nosso
João Caetano.
- Nem almoço, nem
camarote, concluiu Filipe; se perderes, escreverás a história da tua derrota, e
se ganhares, escreverei o triunfo da tua inconstância.
- Bem, escrever-se-á um
romance, e um de nós dois, o infeliz, será o autor.
Augusto escreveu
primeira, segunda e terceira vez o termo da aposta, mas depois de longa e
vigorosa discussão, em que qualquer dos quatro falou duas vezes sobre a
matéria, uma para responder e dez ou doze pela ordem; depois de se oferecerem
quinze emendas e vinte artigos aditivos, caiu tudo por grande maioria, e entre
bravos, apoiados e aplausos, foi aprovado, salva a redação, o seguinte termo:
“No dia 20 de julho de
18... na sala parlamentar da casa n... da “rua de... sendo testemunhas os
estudantes Fabrício e Leopoldo, acordaram Filipe e Augusto, também estudantes,
que, se até o dia “20 de agosto do corrente ano o segundo acordante tiver amado
a uma “só mulher durante quinze dias ou mais, será obrigado a escrever um
“romance em que tal acontecimento confesse; e, no caso contrário, igual “pena
sofrerá o primeiro acordante. Sala parlamentar, 20 de julho de “18... Salva a
redação.”
Como testemunhas:
Fabrício e Leopoldo. Acordantes: Filipe e Augusto.
E eram oito horas da
noite quando se levantou a sessão.
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