A moreninha - Cap. 3. Manhã de Sábado
Seriam pouco mais ou
menos onze horas da manhã, quando o batelão de Augusto abordou à ilha de...
Embarcando às dez horas, ele designou ao seu palinuro o lugar a que se destinava,
e deitou-se para ler mais à vontade o Jornal do Commercio. Soprava vento fresco
e, muito antes do que supunha, Augusto ergueu-se, ouvindo a voz de Leopoldo que
o esperava na praia.
- Bem-vindo sejas,
Augusto. Não sabes o que tens perdido...
- Então... muita gente,
Leopoldo?...
- Não: pouca, mas
escolhida.
No entanto, Augusto
pagou, despediu o seu bateleiro, que se foi remando e cantando com os seus
companheiros. Leopoldo deu-lhe o braço, e, enquanto por uma bela avenida,
orlada de coqueiros, se dirigiam à elegante casa, que lhes ficava a trinta
braças do mar, o curioso estudante recém-chegado examinava o lindo quadro que a
seus olhos tinha e de que, para não ser prolixo, daremos ideia em duas
palavras. A ilha de... é tão pitoresca como pequena. A casa da avó de Filipe
ocupa exatamente o centro dela. A avenida por onde iam os estudantes a divide
em duas metades, das quais a que fica à esquerda de quem desembarca está
simetricamente coberta de belos arvoredos, estimáveis, ou pelos frutos de que
se carregam, ou pelo aspecto curioso que oferecem. A que fica à mão direita é
mais notável ainda fechada do lado do mar por uma longa fila de rochedos e no
interior da ilha por negras grades de ferro está adornada de mil flores, sempre
brilhantes e viçosas, graças à eterna primavera desta nossa boa terra de Santa
Cruz. De tudo isto se conclui que a avó de Filipe tem no lado direito de sua
casa um pomar e do esquerdo um jardim.
E fizemos muito bem em
concluir depressa, porque Filipe acaba de receber Augusto com todas as
demonstrações de sincero prazer e o faz entrar imediatamente para a sala.
Agora, outras duas
palavras sobre a casa: imagine-se uma elegante sala de cinquenta palmos em
quadro; aos lados dela dois gabinetes proporcionalmente espaçosos, dos quais
um, o do lado esquerdo, pelos aromas que exala, espelhos que brilham, e um não
sei quê, que insinua, está dizendo que é gabinete de moças. Imagine-se mais,
fazendo frente para o mar e em toda a extensão da sala e dos gabinetes, uma
varanda terminada em arcos; no interior meia dúzia de quartos, depois uma
alegre e longa sala de jantar, com janelas e portas para o pomar e jardim, e
ter-se-á feito da casa a ideia que precisamos dar.
Pois bem. Augusto
apresentou-se. A sala estava ornada com boa dúzia de jovens interessantes:
pareceu ao estudante um jardim cheio de flores ou o céu semeado de estrelas.
Verdade seja que, entre esses orgulhos da idade presente, havia também algumas
rugosas representantes do tempo passado; porém isso ainda mais lhe sanciona a
propriedade da comparação, porque há muitas rosas murchas nos jardins e
estrelas quase obscuras no firmamento.
Filipe apresentou o seu
amigo a sua digna avó e a todas as outras pessoas que aí se achavam. Não há
remédio senão dizer alguma coisa sobre elas.
A Sra. D. Ana, este o
nome da avó de Filipe, é uma senhora de espírito e alguma instrução. Em
consideração a seus sessenta anos, ela dispensa tudo quanto se poderia dizer
sobre seu físico. Em suma, cheia de bondade e de agrado, ela recebe a todos com
o sorriso nos lábios; seu coração se pode talvez dizer o templo da amizade cujo
mais nobre altar é exclusivamente consagrado à querida neta, irmã de Filipe; e
ainda mais: seu afeto para com essa menina não se limita à doçura da amizade,
vai ao ardor da paixão. Perdendo seus pais, quando apenas contava oito anos, a
inocente criança tinha, assim como Filipe, achado no seio da melhor das avós
toda a ternura de sua extremosa mãe.
Ao lado da Sra. D. Ana
estavam duas jovens, cujos nomes se adivinharão facilmente: uma é a pálida, a
outra a loura. São as primas de Filipe.
Ambas são bonitinhas,
mas, para Augusto, D. Quinquina tem as feições mais regulares; achou-lhe mesmo
muita harmonia nos cabelos louros, olhos azuis e faces coradas, confessando,
todavia, que as negras madeixas e rosto romântico de D. Joaninha fizeram-lhe
uma brecha terrível no coração.
Além destas, algumas
outras senhoras aí estavam, valendo bem a pena de se olhar para elas meia hora
sem pestanejar. Toda a dificuldade, porém, está em pintar aquela mocinha que
acaba de sentar-se pela sexta vez, depois que Augusto entrou na sala: é a irmã
de Filipe. Que beija-flor! Há cinco minutos que Augusto entrou e em tão curto
espaço já ela sentou-se em diferentes cadeiras, desfolhou um lindo pendão de
rosas, derramou no chapéu de Leopoldo mais de duas onças d’água-de-colônia de
um vidro que estava sobre um dos aparadores, fez chorar uma criança, deu um
beliscão em Filipe e Augusto a surpreendeu fazendo-lhe caretas: travessa,
inconsequente e às vezes engraçada; viva, curiosa e em algumas ocasiões
impertinente. O nosso estudante não pode dizer com precisão nem o que ela é,
nem o que não é: acha-a estouvada, caprichosa e mesmo feia; e pretende tratá-la
com seriedade e estudo, para nem desgostar a dona da casa, nem se sujeitar a
sofrer as impertinências e travessuras que a todo momento a vê praticar com os
outros. Enfim, para acabar de uma vez esta já longa conta das senhoras que se
achavam na sala, diremos que aí se notavam também duas velhas amigas da dona da
casa: uma, que só se entreteve, se entretém e se há de entreter em admirar a
graça e encantos de duas filhas que consigo trouxera; e outra, que pertence ao
gênero daquelas que nas sociedades agarram num pobre homem, sentam-no ao pé de
si, e, maçando-o duas e três horas com enfadonhas e intermináveis dissertações,
finalmente o largam, supondo que lhe têm feito grande honra e dado maior
prazer.
Quanto aos homens...
Não vale a pena!... vamos adiante.
Estas observações que
aqui vamos oferecendo fez também Augusto consigo mesmo, durante o tempo que
gastou em endereçar seus cumprimentos e dizer todas essas coisas muito banais e
já muito sediças, mas que se dizem sempre de parte a parte, com obrigado sorrir
nos lábios e indiferença no coração. Concluída essa verdadeira maçada e
reparando que todos tratavam de conversar, para melhor passar as horas e
esperar as do jantar, ele voltou o rosto com vistas de achar uma cadeira
desocupada junto de alguma daquelas moças; porém, ó monfina do pobre
estudante!... Ó itempestivo castigo dos seus maiores pecados!... a segunda das
duas velhas, de quem há pouco se tratou, estendeu a mão e chamou-o, mostrando
com o dedo carregado de anéis um lugar livre junto dela.
Não havia remédio: era
preciso sofrer, com olhos enxutos e o prazer na face, o martírio que se lhe
oferecia. Augusto sentou-se ao pé da Sra. D. Violante.
Ela lançou-lhe um olhar
de bondade e proteção e ele abaixou os olhos, porque os de D. Violante são
terrivelmente feios e os do estudante não se podem demorar por muito tempo
sobre espelho de tal qualidade.
- Adivinho, disse ela,
com certo ar de ironia, que lhe está pesando demais o sacrifício de perder
alguns momentos conversando com uma velha.
- Ó minha senhora!
respondeu o moço, as palavras de V. S. fazem grande injustiça a si própria e a
mim também: a mim, porque me faz bem cheio de rudeza e mau gosto; e a si,
porque, se um cego as ouvisse, certo que não faria ideia do vigor e da...
- Olhem como ele é
lisonjeiro!... exclamou a velha, batendo levemente com o leque no ombro do
estudante, e acompanhando esta ação com uma terrível olhadura, rindo-se com tão
particular estudo, que mostrava dois únicos dentes que lhe restavam.
Augusto olhou fixamente
para ela e conheceu que na verdade se havia adiantado muito. D. Violante era
horrivelmente horrenda, e com sessenta anos de idade apresentava um carão capaz
de desmamar a mais emperreada criança.
A conversação continuou
por uma boa hora; o tédio do estudante chegou a ponto de fazê-lo arrepender-se
de ter vindo à ilha de... Três vezes tentou levantar-se, mas D. Violante sempre
tinha novas coisas a dizer. Falou-lhe sobre a sua mocidade... seus pais, seus
amores, seu tempo, seu finado marido, sua esterilidade, seus rendimentos, seu
papagaio e até suas galinhas. Ah!... falou mais que um deputado da oposição,
quando se discute o voto de graças. Finalmente parau um instante, talvez para
respirar, começar novo ataque de maçada. Augusto quis aproveitar-se da
intermitência: estava desesperado e pela quarta vez ergueu-se.
- Com licença de V. S.
- Nada! disse a velha,
detendo-o e apertando-lhe a mão, eu ainda tenho muito que dizer-lhe.
- Muito que dizer?...
balbuciou o estudante automaticamente, deixando-se cair sobre a cadeira, como
fulminado por um raio.
- O senhor está
incomodado?... perguntou D. Violante, com toda a ingenuidade.
- Eu... eu estou às
ordens de V. S.
- Ah! vê-se que a sua
delicadeza iguala à sua bondade, continuou ela com um acento meio açucarado e
terno.
- Oh, castigo de meus
pecados!... pensou Augusto consigo; querem ver que a velha está namorada de
mim?!! e recuou sua cadeira meio palmo para longe dela.
- Não fuja...
prosseguiu D. Violante, arrastando por sua vez a cadeira até encostá-la à do
estudante, não fuja... eu quero dizer-lhe coisas que não é preciso que os
outros ouçam.
- E então? pensou de
novo Augusto, fiz ou não uma galante conquista?... E suava suores frios.
- O senhor está no
quinto ano de Medicina?...
- Sim, minha senhora.
- Já cura?
- Não, minha senhora.
- Pois eu desejava
referir-lhe certos incômodos que sofro, para que o senhor me dissesse que
moléstia padeço e que tratamento me convém.
- Mas... minha
senhora... eu ainda não sou médico e só no caso de urgente necessidade me
atreveria...
- Eu tenho inteira
confiança no senhor; me parece que é o único capaz de acertar com a minha
enfermidade.
- Mas ali está um
estudante do sexto ano...
- Eu quero o senhor
mesmo.
- Pois, minha senhora,
eu estou pronto para ouvi-la: porém julgo que o tempo e o lugar são poucos
oportunos.
- Nada... há de ser
agora mesmo.
Ah!... A boa da velha
falou e tornou a falar. Eram duas horas da tarde e ela ainda dava conta de
todos os seus costumes, de sua vida inteira; enfim, foi uma relação de
comemorativos como nunca mais ouvirá o nosso estudante. Às vezes Augusto olhava
para seus companheiros e os via alegremente praticando com as belas senhoras
que abrilhantavam a sala, enquanto ele se via obrigado a ouvir a mais
insuportável de todas as histórias. Daqui e de certos fenômenos que acusava a
macista, nasceu-lhe o desejo de tomar uma vingançazinha. Firme neste propósito,
esperou com paciência que D. Violante fizesse ponto final bem determinado a
esmagá-la com o peso do seu diagnóstico e ainda mais com o tratamento que
tencionava prescrever-lhe.
Às duas horas e meia a
oradora terminou o seu discurso, dizendo:
- Agora quero que, com
toda a sinceridade, me diga se conhece a minha enfermidade e o que devo fazer.
- Então V. S. dá-me
licença para falar com toda a sinceridade?
- Eu o exijo.
- Pois, minha senhora,
atendendo tudo quanto ouvi e principalmente a estes últimos incômodos, que tão
a miúdo sofre, e de que mais se queixa, como tonteiras, dores no ventre,
calafrios, certas dificuldades, esse peso dos lombos, etc., concluo e todo o
mundo médico concluirá comigo, que V. S. padece de...
- Diga... não tenha
medo.
- Hemorroidas
D. Violante fez-se
vermelha como um pimentão, horrível como a mais horrível das fúrias, encarou o
estudante com despeito, e, fixando nele seus tristíssimos olhos furta-cores,
perguntou:
- O que foi que disse,
senhor?...
- Hemorroidas, minha
senhora. Ela soltou uma risada sarcástica.
- V. S. quer que lhe
prescreva o tratamento conveniente?
- Menino, respondeu com
mau humor, tome o meu conselho: outro ofício; o senhor não nasceu para médico.
- Sinto ter desmerecido
o agrado de V. S. por tão insignificante motivo. Rogo-lhe que me desculpe, mas
eu julguei dever dizer o que entendia.
Isto dizendo, o
estudante ergueu-se; a velha já não fez o menor movimento para o demorar, e
vendo-o deixá-la, disse em tom profético:
- Este não nasceu para
Medicina!
Mas Augusto,
afastando-se de D. Violante, dava graças ao poder do seu diagnóstico e augurava
muito bem de seu futuro médico, pela grande vitória que acabava de alcançar.
- Agora, sim, disse ele
com os seus botões, vou recuperar o tempo perdido. E procurava uma cadeira,
cuja vizinhança lhe conviesse.
A digna hóspede
compreendeu perfeitamente os desejos do estudante, pois, mostrando-lhe um lugar
junto de sua neta, disse:
- Aquela menina lhe
poderá divertir alguns instantes.
- Mas, minha avó,
exclamou a menina com prontidão, até o dia de hoje ainda não me supus boneca.
- Menina!...
- Contudo, eu serei bem
feliz se puder fazer com que o senhor... senhor...
- Augusto, minha
senhora.
- ... o Sr. Augusto
passe junto a mim momentos tão agradáveis, como lhe foram as horas que gozou ao
pé da Sra. D. Violante.
Augusto gostou da
ironia, e já se dispunha a travar conversação com a menina travessa, quando
Fabrício se chegou a eles e disse a Augusto:
- Tu me deves dar uma
palavra.
- Creio que não é preciso
que seja imediatamente.
- Se a Sra. D. Carolina
o permitisse, eu estimaria falar-te já. Por mim não seja... disse a menina erguendo-se.
- Não, minha senhora,
eu o ouvirei mais tarde, acudiu Augusto, querendo retê-la.
- Nada... não quero que
o Sr. Fabrício me olhe com maus olhos... Além de que, eu devo ir apressar o
jantar, pois leu no seu rosto que a conversação que teve com a Sra. D.
Violante, quando mais não desse, ao menos produziu-lhe muito apetite... mesmo
um apetite de... de...
- Acabe.
- De estudante.
E mal o disse, a
travessa moreninha correu para fora da sala.
Comentários
Postar um comentário