A moreninha - Cap. 4. Falta de Condescendência

A moreninha


 4. Falta de Condescendência

Fabrício acaba de cometer um grave erro e que para ele será de más consequências. Quem pede e quer ser servido, deve medir bem o tempo, o lugar e as circunstâncias, e Fabrício não soube conhecer que o tempo, o lugar e as circunstâncias lhe eram completamente desfavoráveis. Vai exigir que Augusto o ajude a forjar cruel cilada contra uma jovem de dezessete anos, cujo único delito é ter sabido amar o ingrato com exagerado extremo. Ora, para conseguir semelhante torpeza, preciso seria que Fabrício aproveitasse um momento de loucura, um desses instantes de capricho e de delírio em que Augusto pensasse que ferir a fibra mais sensível e vibrante do coração da mulher, a fibra do amor, não é um crime, não é  pelo menos louca e repreensível  leviandade; é apenas perdoável e interessante divertimento de rapazes; e nessa hora não podia Augusto raciocinar tão indignamente. Ainda quando não houvesse nele muita generosidade, estava para desarmá-lo o poder indizível da inocência, o poderoso magnetismo de vinte olhos belos como o planeta do dia, a influência cativadora da formosura em botão, de beleza virgem ainda, de uma anjo, enfim, porque é símbolo de um anjo a virgindade de uma jovem bela.

Mas Fabrício olvidou tudo, e mal, sem dúvida, terá de sair de seu empenho com tantas contrariedades; o tempo não lhe é propício, porque Augusto começa a sentir todos os sintomas de apetite devorador. Ora, um rapaz, e principalmente um estudante com fome, se aborrece de tudo, principalmente do que lhe cheira a maçada. O lugar não menos lhe era desfavorável, porque, diante de um ranchinho de belas moças, quem poderá tramar contra o sossego delas?... Então Augusto, dos tais que por semelhante povo são como formiga por açúcar, macaco por banana, criança por campainha... e ele tem razão! Por último, as circunstâncias também contrariavam Fabrício, pois a Sra. D. Violante havia tido o poder de esgotar toda a elástica paciência do pobre estudante, que não acharia nem mais uma só dose homeopática desse tão necessário confortativo para despender com o novo macista.

Fabrício tomou, pois, o braço de Augusto e ambos saíram da sala: este com vivos sinais de impaciência, e o primeiro com ares de quem ia tratar importante negócio.

A inocente D. Joaninha os acompanhou com os olhos e riu-se brandamente, encontrando os de Fabrício, que teve ainda bastante audácia para fingir um sorriso de gratidão.

Eles se dirigiram ao gabinete do lado direito da sala, o qual fora destinado para os homens; e entrando, fechou Fabrício a porta sobre si, para se achar em toda a liberdade. Enfim, estavam sós. Voltados um para o outro, guardaram alguns momentos de silêncio.    Foi Augusto quem teve de rompê-lo.

- Então, ficamos a jogar o siso?

- Espero a tua resposta, disse Fabrício.

- Ainda me não perguntaste nada, respondeu o outro.

- A minha carta?...

- Eu a li, sim... tive a paciência de lê-la toda.

- E então?...

- Então o quê, homem?...

- A resposta?...

- Aquilo não tem resposta.

- Ora, deixa-te disso; vamos mangar com a moça.

- Tu estás doido, Fabrício?

- Por tua culpa, Augusto.

- Pois então cuidas que o amor de uma senhora deve ser peteca com que se divirtam dois estudantes?...

- Quem é que te fala em peteca?... Pelo contrário, o que eu quero é desgrudar-me do fatal contrabando.

- Não; a pesar teu, deves respeitar e cultivar nobre sentimento que te liga a D. Joaninha. Que se diria do teu procedimento, se depois de trazeres uma moça toda cheia de amor e fé na tua constância, por espaço de três meses, a desprezasses sem a menor aparência de razão, sem a mais pequena desculpa?...

- Então tu, com o teu sistema de...

- Eu desengano: previno a todas que minhas paixões têm apenas horas de vida, e tu, como os outros, juras amor eterno.

- Estou desconhecendo-te, Augusto. Sempre te achei com juízo e bom conceito e agora temo muito que estejas com princípios de alienação mental. Explica-me, por quem és, que súbito acesso de moralidade é esse que tanto te perturba.

- Isso, Fabrício, chama-se inspiração de bons costumes.

- Bravo! bravo! foi muito bem respondido, mas, palavra de honra, que tenho dó te ti! Vejo que em matéria da natureza de que tratamos estás tão atrasado como eu em fazer sonetos. Apesar de todo o teu romantismo ou, talvez, principalmente por causa dele, não vês o que se passa a duas polegadas do nariz. Pois meu amigo, quero te dizer: a teoria do amor do nosso tempo aplaude e aconselha o meu procedimento; tu verás que eu estou na regra, porque as moças têm ultimamente tomado por mote de todos os seus apaixonados extremos ternos afetos e gratos requebros, estes três infinitos de verbos: - iscar, pescar e casar. Ora, bem vês que, para contrabalançar tão parlamentares e viciosas disposições, nós, os rapazes, não podíamos deixar de inscrever por divisa em nossos escudos os infinitos destes três outros verbos: fingir, rir e fugir. Portanto, segue-se que estou encadernado nos axiomas da ciência.

- Com efeito!... Não te supunha tão adiantado!

- Pois que dúvida? Para viver-se vida boa e livre é preciso andar com o olho aberto e pé ligeiro. Então as tais sujeitinhas que, com a facilidade e indústria com que a aranha prende a mosca na teia, são capazes de tecer de repente, com os olhares, sorrisos, palavrinhas doces, suspiros a tempo, medeixes aproximando-se, zelos afetados e arrufos com sal e pimenta, uma armadilha tão emaranhada que, se o papagaio é tolo e não voa logo, mete por força o pé no laço e adeus minhas encomendas, fica de gaiola para todo o resto de seus dias... E, portanto, meu Augusto, deixa-te de insípidos escrúpulos e ajuda-me a sair dos apuros em que me vejo.

- Torno a dizer-te que estás doido, Fabrício, pois que me acreditas capaz de servir de instrumento para um enredo... uma verdadeira traição. Então, que pensas?... Eu requestaria

D. Joaninha, não é assim?... Tu a deixavas, fingindo ciúmes, e depois quem me livraria dos apertos em que necessariamente tinha de ficar?...

- Ora, isso não te custava cinco minutos de trabalho. Tu... inconstante por índole e por sistema.

- Fabrício, deixa-te de asneiras; já que te meteste nisso, avante! Além de que, D. Joaninha é um peixão.

- Oh! oh! oh!... uma desenxabida...

- Que blasfêmia!

- Além disso é impossível... não posso suportar o peso: escrever quatro cartas por semana... Isto só! o talento que é preciso para inventar asneiras e mentiras dezesseis vezes por mês! e depois, o Tobias...

- Puxa-lhe as orelhas.

- Como?... se ele é a cria de D. Joaninha, o alfenim da casa, o S. Benedito da família!...

- Não sei, meu amigo, arranja-te como puderes.

- Lembra-te que foste a causa principal de tudo isso.

- Quem, eu?... eu apenas te disse que não sabias o gosto que tinha o amor à moderna.

- Pois bem, saí do meu elemento, fui experimentar a paixão romântica... aí a tens!...   a tal paixãozinha me esgotou já paciência, juízo e dinheiro. Não a quero mais.

- Tu sempre foste um papa-empadas.

- Sim, e há dois meses que não sei o que é o cheiro delas. Anda, meu Augustozinho, ajuda-me!

- Não posso e não devo.

- Vê lá o que dizes!

- Tenho dito.

- Augusto!

- Agora digo mais que não quero.

- Olha que te hás de arrepender!

- Esta é melhor!... pretendes meter-me medo?...

- Eu sou capaz de vingar-me.

- Desafio-te a isso.

- Desacredito-te na opinião das moças.

- É um meio de tornar-me objeto de suas atenções. Peço-te que o faças.

- Descubro e analiso o teu sistema de iludir a todas.

- Tornar-me-ás interessante a seus olhos.

- Direi que és um bandoleiro.

- Melhor, elas farão por tornar-me constante.

- Mostrarei que a tua moral a respeito de amor é a pior possível.

- Ótimo!... elas se esforçarão por fazê-la boa.

- Hei de, nestes dois dias, atrapalhar-te continuamente.

- Bravo!... não contava divertir-me tanto!

- Então tu teimas no teu propósito?...

- Pois, se é precisamente agora que estou vendo os bons resultados que ele me promete!

- Portanto, estes dois dias, guerra!

- Bravíssimo, meu Fabrício; guerra!

- Antecipo-te que meu primeiro ataque terá lugar durante o jantar.

- Oh! por milhares de razões, tomara eu que chegasse a hora dele!...

- Augusto, até o jantar!

- Fabrício, até o jantar!

Neste momento Filipe abriu a porta do gabinete e, dirigindo-se aos dois, disse:

- Vamos jantar.

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