A moreninha - Cap. 18. Achou Quem o Tosquiasse



18. Achou Quem o Tosquiasse

Escutando aquelas inesperadas palavras que o chamavam para a mesma posição em que ele tinha colocado as quatro moças, Augusto voltou-se de repente e viu no fundo da gruta a interessante Moreninha, que enchia o copo de prata.

- Minha senhora!... balbuciou o estudante, confuso.

D. Carolina respondeu-lhe primeiro com o seu costumado sorriso, e depois assim:

- Não se dirá que um homem zombou impunemente de quatro senhoras; uma outra toma o cuidado de vingá-las. Sr. estudante, eu também sou adepta ao culto desta fada e vou invocá-la em meu auxílio.

A menina travessa bebeu em seguida a estas palavras o seu copo d’água e depois, imitando o estilo de Augusto, que se achava junto dela, disse:

- Quereis que vos fale do passado, do presente ou do futuro?

- De todas essas épocas...  ao menos para ouvir por mais tempo os vaticínios e palavras de tão amável Sibila.

- Pois então principiemos pelo passado. Oh! que belas revelações me fez a fada! Sim, eu estou lendo no livro da vossa vida, estou vendo tudo, estou dentro do vosso espírito e de vosso coração!

- Oh! sim, eu juro que isso é verdade, atalhou o estudante. A menina fingiu não entender a alusão e continuou:

- Senhor, vós amastes muito cedo... creio... sim, foi de idade de treze anos. Augusto recuou um passo; ela prosseguiu:

- Amastes, sim, a uma menina de sete anos, com quem brincastes à borda do mar.

- E quem era ela? como se chamava? perguntou Augusto com fogo, talvez pensando que D. Carolina estava, com efeito, adivinhando e podia dizer-lhe o que ele mesmo ignorava.

- Posso eu sabê-lo? respondeu a Moreninha; a fada só me diz o que se passou em vosso coração e vós, por certo, que também não sabeis quem era essa menina e só a conheceis pelo nome de minha mulher.

- Prossiga, minha senhora!

- Poderia eu contar-vos uma longa história de velho moribundo, esmeralda, camafeu, mas basta de vossa mulher; permiti que vos diga que mostrava ser uma criança doidinha, que cedo começava a fazer loucuras.

- Que cruel juízo!

- Oh! não vos agasteis; eu a respeito também, em atenção a vós, porém, vamos acabar com o vosso passado. Houve um tempo em que quisestes figurar entre os amigos como galanteador de damas, e por justo e bem merecido castigo fostes desgraçado: todas elas zombaram de vós!

E a menina interrompeu-se, para rir-se da cara que fazia Augusto.

- Ora, por esta não esperava eu, disse o estudante.

- A primeira jovem que requestastes foi uma moreninha de dezesseis anos, que jurou-vos gratidão e ternura, e casou-se oito dias depois com um velho de sessenta anos!   não foi assim?

E a menina, de novo, desatou a rir.

- Minha senhora, de que gosta tanto?

- Ora! é que a fada está-me dizendo que ainda em cima vossos amigos, quando souberam de tal, deram-vos uma roda de cacholetas!

- Então a Sra. D. Ana lhe contou tudo isso?

- Juro-vos, senhor, que minha avó não me fala em semelhantes objetos. Consenti que eu continue. A segunda foi uma jovem coradinha, a quem em uma noite ouvistes dizer num baile que éreis um pobre menino com quem ela se divertia nas horas vagas, não foi assim?

- Prossiga, minha senhora.

- A terceira foi uma moça pálida, que zombou solenemente, tanto de um primo que tinha, como de vós. Eis alguns de vossos principais galanteios. Exasperado com o infeliz resultado deles e vivamente tocado das leras e da música de certo lundu que se vos cantou, tomastes outro partido e desde então vós pretendeis fazer-vos passar por borboleta de amor.

- Borboleta?!... Sim... sim...  lembro-me agora que a senhora passeava pelo jardim. Já sei de quem foram certas carreirinhas e, portanto, compreendo que sabeis tudo à custa...

- À custa da fada, senhor, e escuso estender-me mais, porque vós estais bem certo de que eu devo saber ainda muito.

- Sim, mas diga sempre.

- Não, antes quero falar-vos do vosso presente.

- Pelo amor de seus belos olhos, minha senhora, vamos antes ao que eu não sei, vamos ao meu futuro.

- Sois sobejamente sôfrego! não vedes como isso vai contra a boa ordem da narração?

- Mas a desordem é hoje a moda! o belo está no desconcerto; o sublime no que se não entende; o feio é só o que podemos compreender: isto é romântico; queira ser romântica, vamos ao meu futuro.

- Pois bem, vamos ao vosso futuro. Principiarei, como pretendia fazer, se falasse do presente de vossa vida, dizendo-vos que vós não sois inconstante como afetais.

- Misericórdia!

- Mas que estais a ponto de o ser: digo-vos que perdereis uma certa aposta que fizestes com três estudantes.

- Como é isso? Então a senhora sabe...

- A fada, que me revelou isso, leu a termo na carteira de quem o guardou.

- A fada? sim, a feiticeira o leu... Compreendo.

- Vós não sois inconstante, porque tendes até hoje cultivado com religioso empenho o amor de vossa mulher; mas vós ides ser, porque não longe está o dia em que a esquecereis por outra.

- A culpa será dos olhos dessa outra; porém, quem sabe?...

- Desejo que não; contudo, eu já vos vejo em princípio e temo que vades ao fim; sereis perjuro, tereis de escrever um romance e perdoai-me se vos desejo este mal: eu quisera que ao pé de meu irmão, que vos apresentará o termo da aposta, aparecesse a vossos olhos a mulher traída. Do vosso futuro eis quanto me disse a fada.

- E disse bastante para me confundir.

- Quereis que vos fale agora de vosso presente?

- Oh, se quero! No presente está a minha glória.

- Ontem, no baile, dissestes palavras de ternura pelo menos a seis senhoras.

- Esta agora é melhor! e quem o pôde notar?

- Provavelmente a fada vos observava.

- Então a fada, a feiticeira fazia isso?

- Depois do baile puseram-vos duas cartas no bolso.

- Que mãos delicadas...

- Não mo sabe dizer a fada; porém, vós viestes para esta gruta acudindo a um convite e fingistes adivinhar segredos de corações. Não era verdade: a fada nada vos revelou; o que dissestes sabíeis antes e a fada me disse como.

- Explique-me, pois, minha senhora.

- Quando involuntariamente fui causa de vos entornarem café nas calças, vós fostes mudar de roupa e entrastes para o gabinete das senhoras; lá ouvistes tudo o que afetastes adivinhar há pouco.

- E quem me viu entrar?

- A fada, sem dúvida. O cravo de D. Quinquina fostes vós que recebestes no jardim; na noite dos jogos de prendas, fostes vós ainda quem, com uma luz na mão, procurou e achou a trança de cabelos de D. Clementina, embaixo da quarta roseira da rua que vai para o caramanchão.

- Mas quem observou o que eu fiz às escondidas e com tanto cuidado?

- A fada, que, segundo penso, vos tem sempre seguido com os olhos.

- A fada?!... a feiticeira me segue sempre com os olhos?!... Oh! como sou feliz!... a feiticeira é a senhora!

- Senhor! sois pouco modesto; que me importariam vossos passos e vossas ações?...

- Perdão! perdão!... eu sou um tresloucado... um incivil... um doido... não sei o que faço, nem o que digo; mas continue...

- Basta! vós duvidastes da fada e por isso eu termino aqui.

- Não! não, minha senhora! é preciso dizer-me mais alguma cousa ainda!... por força a fada lhe deveria ter revelado! ela, que adivinha tudo o que está dentro do meu coração, digo o que ainda se passa nele.

- Nada mais de disse.

- Beba outro copo d’água...

- Não julgo necessário.

- Pois então...

- Cumpre retirar-me.

- Não, por certo! perdoe-me minha senhora, mas eu devo descobrir todos os meus segredos a quem conhece tão boa parte deles.

- Eu me contento com o pouco que sei.

- Ouça uma só palavra...

- Não sou curiosa.

- Pois a senhora...

- Sei que sou senhora, mas sou exceção de regra; não quero saber.

- Embora, eu lhe direi ainda contra a vontade...

- E para isso toma-me a saída?...

- É só para dizer que eu amo...

- Já sei, a sua mulher.

- Não é isso: a uma bela moça...

- Ela o deve ser agora.

- Muito espirituosa...

- Já ela o era em criança.

- E que se chama...

- Ah! espreitam-nos da entrada da gruta?

Augusto correu a examinar quem era a indiscreta testemunha; não aparecia pessoa alguma; compreendeu então que fora ainda um meio de que se lembrara D. Carolina para não deixá-lo concluir sua declaração e, disposto a lançar-se aos pés da menina, voltou-se já com o nome da bela nos lábios e...

D. Carolina tinha desaparecido da gruta.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

DES-TINO

A SAGA DE UM ANDARILHO PELAS ESTRELAS

A GREVE DOS PLANETAS