A moreninha - Cap. 21. Segundo Domingo: Brincando com Bonecas
21. Segundo Domingo: Brincando com Bonecas
Raiou o belo dia, que seguiu
a sete outros, passados entre sonhos, saudades de esperanças. Augusto está
viajando: já não é mais aquele mancebo cheio de dúvidas e temores da semana
passada, é um amante que acredita ser amado e que vai, radiante de esperanças,
levar à sua bela mestra a lição de marca que lhe foi passada. O prognóstico de
D. Carolina, na gruta
encantada, se vai verificando: Augusto está completamente esquecido da aposta
que fez e do camafeu que outrora deu à sua mulher. Um bonito rosto moreninho
fez olvidar todos esses episódios da vida do estudante. D. Carolina triunfa e
seu orgulho de despotazinha de quantos corações conhece deveria estar
altaneiro, se ela não amasse também.
Como da primeira vez,
Augusto vê o dia amanhecer-lhe no mar; e, como na passada viagem, avista sobre
o rochedo o objeto branco, que vai crescendo mais e mais, à medida que seu
batelão se aproxima, até que distintamente conhece nele a elegante figura de
uma mulher, bela por força; mas desta vez, não como da outra, essa figura se
demora sobre o rochedo, não desaparece como um sonho, é uma bonita realidade, é
D. Carolina que só desce dele para ir receber o feliz estudante que acaba de
desembarcar.
- Minha bela mestra!...
- Meu aprendiz!... já
sei que traz nome bem marcado.
- Oh! sempre precisarei
que me queira puxar as orelhas.
- Não, eu não farei tal
na lição de hoje.
- E se eu merecer?
- Talvez.
- Então errarei toda a
lição.
Eles se sorriram, mas
Filipe acaba de chegar e todos três vão pela avenida se dirigindo a casa.
Ter a ventura de
receber o braço de uma moça bonita e a quem se ama, apreciar sobre si o doce
contato de uma bem torneada mão, que tantas noites se tem sonhado beijar; roçar
às vezes com o cotovelo um lugar sagrado, voluptuoso e palpitante; sentir sob
sua face perfumado bafo que se esvaiu dentre os lábios virginais e nacarados,
cujo sorrir se considera um favor do céu; o apanhar o leque que escapa da mão
que estremeceu, tudo isso... mas para que divagações? que mancebo há aí, de
dezesseis anos por diante, que não tenha experimentado esses doces enleios, tão
leves para a reflexão e tão graves e apreciáveis para a imaginação de quem ama?
Pois bem, Augusto os está gozando neste momento; mas, porque só a ele é isto de
grande entidade, e convém dizer apenas o que absolutamente se faz preciso,
pode-se, sem inconveniente, abreviar toda a história de duas horas, dizendo-se:
almoçaram e chegou a hora da lição.
- Vamos, disse D.
Carolina a Augusto, que estava já sentado a seus pés e em sua banquinha; vamos,
meu aprendiz, o senhor comprometeu-se a trazer-me um nome marcado pela sua mão;
que nome marcou?
- Entendi que devia ser
o nome da minha bela mestra. Ela não esperava outra resposta.
- Vamos, pois, ver a
sua obra, continuou, e creia que estou pouco disposta a perdoar-lhe, como fiz
na lição passada. Venha a marca.
Augusto apresentou
então um finíssimo lenço aos olhos da sua bela mestra, que teve de ler em cada
ângulo dele o nome Carolina e no centro o dístico Minha bela mestra. Tudo
estava primorosamente trabalhado; preciso é confessar: o aprendiz havia marcado
melhor do que nunca o tivera feito D. Carolina.
Augusto esperava com
ansiedade ver brilhar nos olhos de sua bonita querida o prazer da gratidão;
fruía já de antemão o terno agradecimento com que contava, quando viu, com
espanto, que sua bela mestra ia gradualmente corando e por fim se fez vermelha
de cólera e de despeito.
- Nunca a mão grosseira
de um homem poderia marcar assim!... disse ela a custo.
- Mas, minha bela
mestra...
- Eu quero saber quem
foi! exclamou com força.
- Eu não entendo...
- Foi uma mulher! isso
não carece que me diga. Uma moça que lhe marcou este lenço para o senhor vir
zombar e rir-se de mim, de minha credulidade, de tudo...
- Minha senhora...
- Vejam!... já nem me
quer chamar sua mestra!... agora só sabe dizer “minha senhora!”...
A interessante jovem
acabava de ser inesperadamente assaltada de um acesso de ciúme. Augusto estava
espantado e a Sra. D. Ana, levantando os olhos ao escutar a última exclamação
de sua neta, viu-a correndo para ela.
- Que é isto menina? perguntou.
- Veja, minha querida
avó: aqui está a marca que ele me traz! Eu queria um nome muito mal feito, uma
barafunda que se não entendesse, o pano suado e feio, tudo mau, tudo péssimo;
eu me riria com ele. Sabe, porém, o que fez? foi para a Corte tomar outra
mestra, que não há de ter a minha paciência, nem o meu prazer, mas que marca
melhor que eu, que é mais bonita!... veja, minha querida avó; ele tem outra
mestra, outra bela mestra!...
E dizendo isto, ocultou
o rosto no seio da extremosa senhora e começou a soluçar.
- Que loucura é essa,
menina? que tem que ele tomasse outra mestra? pois por isso choras assim?
- Mas nem me quer dizer
o nome dela!... Que me importa que seja moça ou bonita? nada tenho com isso,
porém, quero saber-lhe o nome, só o nome!...
Então ela ergueu-se e,
com os olhos ainda molhados, com a voz entrecortada, mas com toda a beleza da
dor e delírio do ciúme, voltou-se para Augusto e perguntou:
- Como se chama ela?
- Juro que não sei.
- Não sabe?...
- Quis trazer um lenço
bem marcado para ostentar meus progressos e motivar alguns gracejos e mandei-o
encomendar a uma senhora muito idosa, que vive destes trabalhos.
- Muito idosa?...
- É verdade.
- Não lhe deram este
lenço?
- Paguei-o.
- Pois eu o rasgo...
- Pode o fazer.
- Ei-lo em tiras.
- Que fazes, Carolina?
exclamou a Sra. D. Ana, querendo, já tarde, impedir que sua neta rasgasse o
lenço.
- Fez o que cumpria,
minha senhora, acudiu Augusto: exterminou o mau gênio que acabava de fazê-la
chorar.
- E que importa que eu
rasgasse um lenço? minha querida avó, peço-lhe licença para dar um dos meus ao
Sr. Augusto.
A Sra. D. Ana, que
começava a desconfiar da natureza dos sentimentos da mestra e do aprendiz,
julgou a propósito não dar resposta alguma, mas nem isso desnorteou a viva
mocinha que, tirando de sua cesta de costura um lenço recentemente por ela
marcado, o ofereceu a Augusto, dizendo:
- Eu não admito uma só
desculpa, não desejo ver a menor hesitação; quero que aceite este lenço.
Augusto olhou para a
Sra. D. Ana, como para ler-lhe n’alma o que ela pensava daquilo.
- Pois rejeita um
presente de minha neta? perguntou a amante avó. A resposta de Augusto foi um
beijo na prenda de amor.
- Agora, que já estamos
bem, disse ele, vamos à minha lição.
- Não, não, respondeu a
bela mestra, basta de marcar; não me saí bem do magistério, chorei diante do
meu aprendiz, não falemos mais nisto.
- Então fui julgado
incapaz de adiantamento?
- Ao contrário, pelo
trabalho que me trouxe, vi que o senhor estava adiantado demais; porém, sou eu
quem tem outros cuidados.
- Já tem cuidados?...
- Quem é que deles não
carece?... O pai de família tem os filhos, o senhor os seus livros e eu, que
sou criança, tenho as minhas bonecas. Quer vê-las?
- Com o maior prazer.
Um momento depois a
sala estava invadida por uma enorme quantidade de bonecas, cada uma das quais
tinha seus parentes, seus vestidos, joias e um número extraordinário de
bugiarias, como qualquer moça da moda as tem no seu toucador.
Ora, o tal bichinho
chamado amor é capaz de amoldar seus escolhidos a todas as circunstâncias e de
obrigá-los a fazer quanta parvoíce há neste mundo. O amor faz o velho criança,
o sábio doido, o rei humilde cativo; faz mesmo, às vezes, com que o feio pareça
bonito e o grão de areia um gigante. O amor seria capaz de obrigar um coxo a
brincar o tempo-será, a um surdo o companheiro companhão e a um cego o procura
quem te deu. O amor foi inventor das cabeleiras, dos dentes postiços que...
mas, alto lá! que isto é bulir com muita gente; enfim, o amor está fazendo um
estudante do quinto ano de Medicina passar um dia inteiro brincando com
bonecas.
Com efeito, Augusto já
sabe de cor e salteado todos os nomes dos membros daquela família; conhece os
diversos graus de parentesco que existem entre eles, acalenta as bonecas
pequenas, despe umas e veste outras, conversa com todas, examina o
guarda-roupa, batiza, casa, em uma palavra, dobra-se aos prazeres de sua bela
mestra, como uma varinha ao vento.
No entanto a Sra. D.
Ana os observa cuidadosa; tem simpatizado muito Augusto, mas nem por isso quer
entregar todo o futuro do objeto que mais ama no mundo ao só abrigo do nobre
caráter e sérias qualidades que tem reconhecido no mancebo.
Como de costume, a
tarde deve de ser empregada em passeios à borda do mar e pelo jardim. O maior
inimigo do amor é a civilidade. Augusto o sentiu, tendo de oferecer seu braço à
Sra. D. Ana; mas esta lhe fez cair a sopa no mel, rogando-lhe que o reservasse
para a sua neta.
Filipe acompanhava sua
avó e na viva conversação que entretinham, o nome de Augusto foi mil vezes
pronunciado.
Uma vez Augusto e
Carolina, que iam adiante, ficaram muito distantes do par que os seguia.
A mão da bela Moreninha
tremia convulsamente no braço de Augusto e este apertava às vezes contra seu
peito, como involuntariamente, essa delicada mão; alguns suspiros vinham também
perturbá-los mais e havia dez minutos eles se não tinham dito uma palavra.
Em uma das ruas do
jardim duas rolinhas mariscavam; mas, ao sentir passos, voaram e assentando-se
não longe, em um arbusto, começaram a beijar-se com ternura; e esta cena se
passava aos olhos de Augusto e Carolina!...
Igual pensamento,
talvez brilhou em ambas aquelas almas, porque os olhares da menina e do moço se
encontraram ao mesmo tempo e os olhos da virgem modestamente se abaixaram e em
suas faces se acendeu um fogo, que era o do pejo. E o mancebo, apontando para
as pombas, disse:
- Elas se amam!
E a menina murmurou
apenas:
- São felizes!
- Pois acredita que em
amor possa haver felicidade?
- Às vezes.
- Acaso, já tem a
senhora amado?
- Eu?!... e o senhor?!
- Comecei a amar há
poucos dias.
A virgem guardou
silêncio e o mancebo, depois de alguns instantes, perguntou tremendo:
- E a senhora já amou
também?
Novo silêncio; ela
pareceu não ouvir, mas suspirou. Ele falou menos baixo:
- Já ama também?...
Ela abaixou ainda mais
os olhos e com voz quase extinta disse:
- Não sei... talvez...
- E a quem?
- Eu não perguntei a
quem o senhor amava.
- Quer que lhe diga?...
- Eu não pergunto.
- Posso eu fazê-lo?
- Não... Não lho
impeço.
- É a senhora.
D. Carolina fez-se
cor-de-rosa e só depois de alguns instantes pôde perguntar, forcejando um
sorriso:
- Por quantos dias?
- Oh! para sempre!...
respondeu Augusto, apertando-lhe vivamente o braço. Depois ainda continuou:
- E a senhora não me
revela o nome feliz?...
- Eu não... não
posso...
- Mas por que não pode?
- Porque não devo.
- E nunca o dirá?!
- Talvez um dia.
- E quando?...
- Quando estiver certa
que ele não me ilude.
- Então... ele é
volúvel?...
- Ostenta sê-lo...
- Oh!... pelo céu!... acabe
de matar-me!... basta o nome pronunciado bem em segredo, bem no meu ouvido,
para que ninguém o possa ouvir, nem a brisa o leve... Pelo céu!...
- Senhor!...
- Um só nome que
peço!...
- É impossível... eu
não posso!...
- Se eu perguntasse?...
- Oh!... não!...
- Serei eu?...
A virgem tremeu toda e
não pôde responder. Augusto lhe perguntou ainda, com fogo e ternura:
- Serei eu?...
A interessante
Moreninha quis falar... Não pôde, mas, sem o pensar, levou o braço do mancebo
até ao peito e lhe fez sentir como o seu coração palpitava.
- Serei eu?...
perguntou uma terceira vez Augusto, com requintada ternura.
A jovenzinha murmurou
uma palavra que pareceu mais um gemido que uma resposta, porém que fez
transbordar a glória e entusiasmo na alma do seu amante. Ela tinha dito
somente:
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