A moreninha - Cap. 19. Entremos nos Corações
19. Entremos nos Corações
O que é bom dura pouco.
As festas estão acabadas; nossas belas conhecidas bordam; nossos alegres
estudantes estão de livro na mão. Mas, pelo que toca a estes, qual é, digam-me,
qual é o estudante que, depois de uma patuscada de tom, não fica por oito dias
incapaz de compreender a mais insignificante lição? Isto sucede assim; essa
pobre gente vê, por toda a parte, e misturando-se com todos os pensamentos, no
livro em que estuda, nas estampas que observa, na dissertação que escreve, o
baile, as moças e os prazeres que apreciou.
O nosso Augusto, por
exemplo, está agora bronco para as lições e impertinente com tudo. Rafael é
quem paga o pato; se o inocente moleque lhe apronta o chá muito cedo, apanha
meia dúzia de bolos, porque quer ir vadiar pelas ruas; se no dia seguinte se
demora só dez minutos, leva dois pescoções, para andar mais ligeiro. Não há,
enfim, cousa alguma que possa contentar o Sr. Augusto; está aborrecido da
Medicina, tem feito duas gazetas na aula; de ministerial que era, passou-se
para a oposição; não quer mais ser assinante de periódicos, não há para seus
olhos lugar nenhum bonito no mundo; aborrece a Corte, detesta a roça e só gosta
das ilhas.
Deveremos fazer-lhe uma
visita; ele está em seu gabinete e um pouco menos carrancudo, porque Leopoldo,
o seu amigo do coração, o acompanha e tem a paciência de lhe estar ouvindo,
pela duodécima vez, a narração do que com ele se passou na ilha de...
Segundo parece, Augusto
acaba de relatar o que ocorreu na gruta, entre ele e a bela Moreninha, porque
Leopoldo lhe perguntou:
- E por onde fugiria
ela?...
- Por uma difícil saída
que eu não havia observado, respondeu Augusto, e que exatamente se praticava no
fundo da gruta.
- Que diabinho de
menina!
- Quanto mais se tu
notasses a graça e malícia com que ela, quando eu entrei na sala, me perguntou
sossegadamente: “Esteve dormindo na gruta, Sr. Augusto?...”
- Então ela gostou da
tua semideclaração?!...
- Não... não... se ela
tivesse gostado, não me fugiria.
- Ora, é boa! não devia
fazer outra coisa.
- Se ela gostasse de
mim!... mas, por que me não deu um só sinal de ternura?... Também eu, às vezes,
tão adiantado, fui desta um tolo, um basbaque! tremi diante de uma criança que
não tem quinze anos e não soube dizer duas palavras.
- Estás doido, Augusto,
e doido varrido; acredita que D. Carolina foi mais sensível aos teus
cumprimentos que aos de nenhum outro, e se não, dize por que se não deixou ela
dormir, como as outras senhoras, e foi à hora de tua partida passear pela praia
e ver-te embarcar?... Por que ficou ali passeando até desaparecer o teu
batelão?...
- Isto não significa
nada.
- Ora, ature-se um
namorado!... mas venha cá, Sr. Augusto, então como é isso?... estamos realmente
apaixonados?!
- Quem te disse
semelhante asneira?...
- Há três dias que não
falas senão na irmã de Filipe e...
- Ora, viva! quero
divertir-me... digo-te que a acho feia, não é lá essas coisas; parece ter mau
gênio. Realmente notei-lhe muitos defeitos... sim... mas, às vezes...
Olha, Leopoldo, quando ela fala ou mesmo quando está calada, ainda
melhor; quando ela dança ou mesmo quando está sentada... ah! ela rindo-se... e
até mesmo séria... quando ela canta ou toca ou brinca ou corre, com os cabelos
à négligé, ou divididos em belas tranças; quando... Para que dizer mais?
Sempre, Leopoldo, sempre ela é bela, formosa, encantadora, angélica!
- Então, que história é
essa? Acabas divinizando a mesma pessoa que, principiando, chamaste feia?...
- Pois eu disse que ela
era feia? É verdade que eu... no princípio... Mas depois...
Ora! estou com dores de
cabeça, este maldito Velpeau!... Que lição temos amanhã?
- Tratar-se-á das
apresentações de...
- Temos maçada! Quem te
perguntou por isso agora? Falemos de D. Carolina, do baile, do...
- Eis aí outra! Não
acabaste de perguntar-me qual era a lição de amanhã?
- Eu? Pode ser... Esta
minha cabeça!...
- Não é a tua cabeça,
Augusto, é o teu coração.
Houve um momento de
silêncio. Augusto abriu um livro e fechou-o logo; depois tomou rapé, passeou
pelo quarto duas ou três vezes e, finalmente, veio de novo sentar-se junto de
Leopoldo.
- É verdade, disse; não
é a minha cabeça: a causa está no coração. Leopoldo, tenho tido pejo de te
confessar, porém não posso mais esconder estes sentimentos que eu penso que são
segredos e que todo o mundo mos lê nos olhos! Leopoldo, aquela menina que
aborreci no primeiro instante, que julguei insuportável e logo depois
espirituosa, que daí a algumas horas comecei a achar bonita, no curto trato de
um dia, ou melhor ainda, em alguns minutos de uma cena de amor e piedade, em
que a vi de joelhos banhando os pés de sua ama, plantou no meu coração um
domínio forte, um sentimento filho da admiração, talvez, mas sentimento que é
novo para mim, que não sei como o chame, porque o amor é um nome muito frio
para que o pudesse exprimir!... Eu a mim não conheço... não sei onde irá isto
parar... Eu amo! ardo! morro!
- Modera-te, Augusto,
acalma-te, não é graça; olha que estás vermelho como um pimentão.
- Oh! tudo naquela ilha
fatal se assanhou para enfeitiçar-me, tudo, até a própria mentira.
- E tu acreditaste
muito nessa senhora?...
- Escuta, Leopoldo: uma
vez que com a avó de Filipe conversava na gruta, eu fatigado e sequioso, bebi
um copo d’água da fonte do rochedo; então, a nossa boa hóspeda contou-me uma
fabulosa e singular tradição daquela fonte. A água dizia-se milagrosa e quem
bebesse dela não sairia da ilha sem amar algum de seus habitantes. Eis aqui,
pois, uma mentira, mas uma mentira que excitou a minha imaginação; uma mentira
que me perseguiu lá dois dias e que me persegue ainda hoje; uma mentira, enfim,
que se transformou em verdade, porque eu bebi daquela água e não pude deixar a
ilha sem amar, e muito, um de seus habitantes...
- Deveras que isso não
deixa de ser interessante. Mas que efeito esperas tu que provenha de toda essa
moxinifada?
- Que efeito?... O...
amor...
- Amor?... Amor não é
efeito, nem causa, nem princípio, nem fim, e é tudo, tudo isso ao mesmo tempo;
é uma coisa que... sim... finalmente, para encurtar razões, amor é o diabo...
Dize-me, pois, sinceramente falando, qual o resultado que pensas tirar de tudo
isso que me contaste.
- Que resultado?...
O... amor...
- E ele a dar-me com o
maldito amor! Augusto, falemos sério; essa tua exaltação estava muito em ordem
num moço que quisesse desposar D. Carolina; porém tu nem cuidas em casamento
nem, se tal pensasses, te lembrarias, roceiro como és, de escolher para mulher
uma menina que foi criada, educada e pode-se dizer que mora na Corte.
- Esta agora não é
má!... Deveras que ainda não me passou pela mente a ideia do casamento, nem
chegará a tal ponto minha loucura; mas suponhamos o contrário disto: que mal tu
achas em que um roceiro se case com uma moça da cidade?...
- Que mal?... Ora,
escuta: devendo ir morar na roça, a moça tem, necessariamente, de mudar de
costumes e de vida; compreende, pois, quanto atormentará o coração do pobre marido
à vista dos dissabores e contrariedades que sofrerá na solidão e monotonia
campestre a senhora amamentada no seio dos prazeres e festins da Corte!...
quanto devem entristecer os suspiros e saudades de que serás testemunha, quando
a amada companheira recordar-se de sua família, de suas amigas, do teatro, do
passeio, dessa cadeia de delícias, enfim, que, a pesar dela a ligará ainda a
seu passado!...
- Oh! não, não,
Leopoldo, se o marido for amado por ela!... Quando se ama deveras e se está com
o objeto do amor, não se recorda, não se deseja, não se quer mais nada!...
- Tu falas em amor,
Augusto?... Ainda bem que somos ambos estudantes da roça e posso dizer-te agora
o que entendo, sem medo de ofender a susceptibilidade de cortesão algum. Pois
ainda não observaste que o verdadeiro amor não se dá muito com os ares da
cidade?... que por natureza e hábito, as nossas roceiras são mais constantes
que as cidadoas?... Olha, aqui encontramos nas moças mais espírito, mais
jovialidade, graça e prendas, porém, nelas não acharemos nem mais beleza, nem
tanta constância. Estudemos as duas vidas. A moça da Corte cresce e vive
comovida sempre por sensações novas e brilhantes, por objetos que se
multiplicam e se renovam a todo o momento, por prazeres e distrações que se precipitam;
ainda contra a vontade, tudo a obriga a ser volúvel: se chega à janela um
instante só, que variedade de sensações! seus olhos têm de saltar da carruagem
para o cavaleiro, da senhora que passa para o menino que brinca, do séquito do
casamento para o acompanhamento do enterro! Sua alma tem de sentir ao mesmo
tempo o grito de dor e a risada de prazer, os lamentos, os brados de alegria e
o ruído do povo; depois, tem o baile com sua atmosfera de lisonjas e mentiras,
onde ela se acostuma a fingir o que não sente, a ouvir frases de amor a todas
as horas, a mudar de galanteador em cada contradança. Depois, tem o teatro,
onde cem óculos fitos em seu rosto parecem estar dizendo - és bela! e assim
enchendo-a de orgulho e muitas vezes de vaidade; finalmente, ela se faz por
força e por costume tão inconstante como a sociedade em que vive, tão mudável
como a moda dos vestidos. Queres agora ver o que se passa com a moça da
roça?...
Ali ela está na solidão
de seus campos, talvez menos alegre, porém, certamente, mais livre; sua alma é
todos os dias tocada dos mesmos objetos; ao romper d’alva, é sempre e só aurora
que bruxuleia no horizonte; durante o dia, são sempre os mesmos prados, os
mesmos bosques e árvores; de tarde, sempre o mesmo gado que se vem recolhendo
ao curral; à noite, sempre a mesma lua que prateia seus raios na lisa
superfície do lago. Assim, ela se acostuma a ver e amar um único objeto; seu
espírito, quando concebe uma ideia, não a deixa mais, abraça-a, anima-a, vive
eterno com ela; sua alma, quando chega a amar, é para nunca mais esquecer, é
para viver e morrer por aquele que ama. Isto é assim, Augusto; considera que é
lá em nosso campos que mais brilham esses sentimentos, que são a mesma vida e
que não podem acabar senão com ela!...
- Como estás exagerado,
Leopoldo! juraria que desejas casar com alguma moça da roça!
- Oh!... se esse desejo
me dominar, certamente que o satisfarei com uma das muitas
cachopinhas de minha
terra.
- Eu logo vi que nos
teus raciocínios e observações andava o gênio da prevenção; escuso-me, porém,
de responder-te, pois que falaste em geral e desse modo concedes...
- Que há muitas
exceções, sem dúvida?
- Bom! quando não, tu
me forçarias a tomar a palavra para defender a linda Moreninha, que tanto me
cativa?
- Então, Augusto, teremos,
porventura, um romance?
- Que romance?
- Perderás a aposta e
ao completar-se o mês...
- Daqui até lá... se eu
pudesse esquecê-la!... mas aquela menina não é como as outras: é uma
tentação... um diabinho...
- Quando, pois, começas
a escrever?
- Estás tolo...
respondeu Augusto, tomando por um momento seu antigo bom humor; eu ainda
pretendo nestes quinze dias mudar de amor três vezes.
Basta, porém, de
estudantes. Já temos ouvido bastante o nosso Augusto e demorar- nos mais tempo
em seu gabinete fora querer escutar ainda as mesmas coisas: porque o tal
mocinho, que quer campar de beija-flor, parece que caiu no visco dos olhos e
graças da jovem beleza da ilha de... e está sinceramente enamorado dela; ora,
todos sabem que os amantes têm um prazer indizível em matrequear os ouvidos dos
que os atendem com uma história muito comprida e mil vezes repetida que,
reduzindo-se à expressão mais simples, ficaria em zero ou, quando muito, nos
seguintes termos: “eu olhei e ela olhou; eu lhe disse - pode ser, não pode ser”.
Deixemos, portanto, o senhor Augusto entregue a seus cuidados de moço, e tanto
mais que já conhecemos o estado em que se acha. Vamos agora entrar no
coraçãozinho de um ente bem amável, que não tem, como aquele, uma pessoa a quem
confie suas penas, e por isso sofre talvez mais. Faremos uma visita à nossa
linda Moreninha.
Também suas
modificações têm aparecido no caráter de D. Carolina, depois dos festejos de
Sant’Ana. Antes deles, era essa interessante jovenzinha o prazer da ilha de...
Irreconciliável inimiga da tristeza, ela ignorava o que era estar melancólica
dez minutos e praticava o despotismo de não consentir que alguém o estivesse;
junto dela, por força ou vontade, tudo tinha que respirar alegria; sabia tirar
partido de todas as circunstâncias para fazer rir, e, boa, afável e carinhosa
para com todos, amoldava os corações à sua vontade; o ídolo, o delírio de
quantos a praticavam, era ela a vida daquele lugar e empunhava com as suas
graças o cetro do prazer. Hoje suas maneiras são outras; e, enquanto suas
músicas se empoeiram, seu piano passa dias inteiros fechado, suas bonecas não
mudam de vestido, ela vaga solitária pela praia, perdendo seus belos olhares na
vastidão do mar, ou, sentada no banco de relva da gruta, descansa a cabeça em
sua mão e pensa... Em quê?... quais serão os solitários pensamentos de uma
menina de menos de quinze anos?... E às vezes suspira... um suspiro?... Eis o
que é já um pouco explicativo.
Assim como o grito tem
o eco, a flor o aroma e a dor o gemido, tem o amor o suspiro; ah! o amor é
demoninho que não pede para entrar no coração da gente e, hóspede quase sempre
importuno, por pior trato que se lhe dê, não desconfia, não se despede, vai-se
colocando e deixando ficar, sem vergonha nenhuma, faz-se dono da casa alheia,
toma conta de todas as ações, leva o seu domínio muito cedo aos olhos, e às
vezes dá tais saltos no coração, que chega a ir encarapitar-se no juízo; e
então, adeus minhas encomendas!...
Pois muito bem, parece
que a tal tentação anda fazendo pelóticas no peito da nossa cara menina; também
não há moléstia de mais fácil diagnóstico. Uma mocinha que não tem cuidados,
com quem a mamãe não é impertinente, que não sabe dizer onde lhe dói, que não
quer que se chame médico, que suspira sem ter flatos, que não vê o que olha, que
acha todo o guisado mal temperado, é porque já ama; portanto, D. Carolina ama,
mas... a quem?!...
Ah! Sr. Augusto! Sr.
Augusto! a culpa é toda sua, sem dúvida. Esta bela menina, acostumada desde as
faixas a exercer um poder absoluto sobre todos os que a cercam, não pôde ouvir
o estudante vangloriar-se de não ter encontrado ainda uma mulher que o
cativasse deveras, sem sentir o mais vivo desejo de reduzi-lo a obediente
escravo de seus caprichos; ela pôs então em ação todo o poder de suas graças,
ideou mesmo um plano de ataque, estudou a natureza e os fracos do inimigo;
observou; bateu-se: o combate foi fatal a ambos, talvez, e no fim dele a
orgulhosa guerreira apalpou o seu coração e sentiu que nele havia penetrado um
dardo; consultou a sua consciência e ouviu que ela respondia; se venceste
também estás vencida!
Com efeito, D. Carolina
ama o feliz estudante, e uma mistura de saudades e de temor da inconstância do
seu amado é provavelmente a causa de sua tristeza; ajunte-se a isto a novidade
e os cuidados de um amor nascente e primeiro, o incômodo de um sentimento novo,
inexplicável, que lhe enchia o inocente coração e ver-se-á que ela tem suas
razões para andar melancólica.
E, portanto, toda a
família está assaltada do mesmo mal; há na ilha uma epidemia de mau humor que
tem chegado a todos, desde a Sra. D. Ana até à última escrava. Além de quanto
se acaba de expor, acresce que Filipe se deixou ficar na cidade a semana
inteira, sem querer dispensar uma só tarde para vir visitar sua querida avó e a
tão bonita maninha.
Eis, porém, o que se
chama acusação injusta. Diz o ditado que: - falai no mau, aprontai o pau!
Filipe estava esperando pelo dia de sábado para aproveitar o domingo todo no
seio de sua família; ei-lo aí que recebe a bênção de sua avó e beija a fronte
de sua irmã.
- Pensei, disse aquela,
que não queria mais ver-nos!
- E quase que deixei a
viagem para amanhã, minha boa avó.
- O ingrato ainda o
diz... ouves, Carolina?... Então por quê?...
- Para vir na companhia
de Augusto, que deve passar o dia conosco.
Estas palavras tiveram
poder elétrico; D. Carolina, para ocultar a perturbação que a agitava, correu a
esconder-se em seu quarto.
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