A moreninha - Cap. 20. Primeiro Domingo: Ele Marca
20. Primeiro Domingo: Ele Marca
Augusto madrugou, e
muito; quando a aurora começou a aparecer, já ele havia vencido meia viagem e
seu desejo era ir acordar na ilha de..., uma pessoa que tinha o mau costume de
dormir até alto dia; por isso instava com os seus remeiros para que
forcejassem; e, enquanto seu batelão se deslizava pelas águas, rápido como uma
flecha pelos ares, ele o acusava de pesado, de vagoroso; tinha há muito
descoberto a ilha de... e; os objetos foram pouco a pouco se tornando mais e
mais distintos; viu a casa, viu o rochedo em que outrora a tamoia deveria ter
cantado seus amores e de sobre o qual cantara, há oito dias, D. Carolina a sua
balada; depois distinguiu sobre esse rochedo negro um ponto, um objeto branco,
que foi crescendo, sempre crescendo, que enfim lhe pareceu uma figura de
mulher, que ostentava a alvura de seus vestidos. Depois ele tinha desviado um
pouco os olhos; quando os voltou de novo para o rochedo, a figura branca havia
desaparecido como um sonho.
Enfim o batelão abordou
a ilha de...; Augusto correu a casa de que tantas saudades sofrera; todos já se
tinham levantado; ninguém dormia, D. Carolina estava vestida de branco.
- Eu lhe agradeço bem,
Sr. Augusto, disse a Sra. D. Ana, depois dos primeiros cumprimentos; eu lhe
agradeço a sua boa visita; nós temos passado oito dias de nojo, e foi preciso
que Filipe nos trouxesse a notícia de sua vinda, para reviver nossa antiga
alegria; Carolina, por exemplo, desde ontem à noite já tem estado sofrivelmente
travessa.
- Eu, minha avó, sempre
tive fama de desinquieta e prazenteira; e se ontem me adiantei, foi porque
chegou-me um companheiro para traquinar comigo.
- Não o negues, menina;
tens estado melancólica e abatida toda esta semana; eram saudades da agradável
companhia que tivemos. Que eram saudades conheci eu pelos suspiros que soltavas
e também não vai mal nenhum em confessá-lo.
D. Carolina voltou o
rosto. Augusto arregalou os olhos e sentiu que a ventura lhe inundava o
coração.
- O mesmo por lá nos
sucedeu, disse Filipe tomando a palavra; estivemos todos carrancudos e, seja dito
em amor da verdade, Augusto, mais do que nenhum outro, gostou de nosso trato e
nossa companhia; realmente foi ele que o mostrou sofrer maiores saudades.
- É verdade, Sr.
Augusto? perguntou a boa hóspeda.
- Minha senhora, a
visita que vim ter o gosto de fazer é a melhor resposta que lhe posso dar.
D. Carolina tinha os
olhos em um livro de música, mas seus ouvidos e sua atenção pendiam dos lábios
de Augusto; ouvindo as últimas palavras do estudante, ela sorriu brandamente.
- De que estás rindo,
Carolina? perguntou Filipe.
- De um engraçado
pedacinho da cavatina do Fígaro, no Barbeiro de Sevilla.
Então ele examinou o
livro e viu que havia mentido, porque o que tinha diante de seus olhos era uma
coleção de modinhas do Laforge.
Duas horas depois
serviu-se o almoço. Mas, durante essas duas horas, que se passaram muito
depressa, Augusto teve de agradecer as obsequiosas atenções da avó de Filipe,
que dizia ter por ele notável predileção, e também de reparar com esmero e
minuciosidade no objeto de seus recentes cultos. Em resultado de suas
observações concluiu que D. Carolina estava bonita como dantes, porém, mais
lânguida; que às vezes reparava suas indiscrições e que outras, quando mais
parecia ocupar-se com seus alegres trabalhos, olhava-o furto, com uma certa expressão
de receio, pejo e ardor, que a embelecia ainda mais.
Durante o almoço a
conversação divagou sobre inúmeros objetos; finalmente teve de ir bulir com um
pobre lencinho que estava na mão de D. Carolina, e que, se aí não estivesse,
passaria desapercebido.
- Eu julgo que ele está
trabalhoso e perfeitamente marcado, disse Augusto.
- É ir muito longe,
respondeu a menina; aí o tem, observe-o de mais perto; repare que barafunda vai
por aqui.
- Ora, eu acho tudo o
melhor possível; ao muito, poder-se-ia dizer que este X foi marcado por mão de
moça travessa.
- Quer dizer que foi
pela minha? Adivinhou.
- Tem uma bela prenda,
minha senhora.
- Que é muito comum.
- E nem por isso merece
menos.
- Eu não entendo assim;
aprecio bem pouco o que todo o mundo pode ter. Quem não sabe marcar?
- Eu, minha senhora.
- É porque não quer.
- É porque não posso;
eu não me poderia haver com uma agulha na mão.
- Um dia de paciência
lhe seria suficiente.
- Querem ver, acudiu
Filipe, que minha maninha reduz Augusto a aprender a marcar!
- Então, seria isso
alguma asneira?
- Não, por certo;
maninha pode mesmo dar-te algumas lições.
- Nada, respondeu a
menina; sou muito raivosa e à primeira linha que ele rebentasse, eu o chamaria
a bolos.
- Se é uma condição que
oferece, eu a aceito, minha senhora; ensine-me com palmatória.
- Veja o que diz!...
- Repito-o.
- Pois bem; palmatória
não, porque, enfim, podia doer-lhe muito; mas de cada vez que eu julgar
necessário, dar-lhe-ei um puxão de orelha.
- Menina! disse a Sra.
D. Ana.
- Mas, minha avó, eu
não estou pedindo a ele que venha aprender comigo.
- Porém podes
ensinar-lhe com bons modos.
- É o que pretendo
fazer.
- Ele há de aproveitar
muito.
- Terá os meus elogios.
- E se por acaso errar
alguma vez?
- Levará um puxão de
orelha.
- Se me é permitido,
disse Augusto, aceito as condições.
- Pois bem, respondeu
D. Carolina, está o senhor matriculado na minha aula de marcar e daqui a uma
hora principiaremos a nossa lição.
- E então ele não
passeia comigo? perguntou Filipe.
- Depois da lição,
respondeu a mestra, fazendo-se de grave; antes, não lhe dou licença.
Levantaram-se da mesa;
algum tempo foi destinado a descansar; Filipe desafiou Augusto para uma partida
de gamão e incontinenti foram travar combate na varanda; Filipe derrotou seu
competidor em três jogos consecutivos; estavam no começo do quarto, quando
tocou uma campainha; os dois estudantes não deram atenção a isso e continuaram:
o jogo tornou-se duvidoso; qualquer dos dois podia dar ou levar gamão; Augusto
acabava de lançar uns dois e ás, que desconcertaram seu antagonista, quando D.
Carolina apareceu e, dirigindo-se ao seu discípulo, disse com engraçada
seriedade:
- O senhor não ouviu
tocar a campainha?
- Então isso era
comigo?
- Sim, senhor, são
horas de lição, e espero que para outra vez não me seja preciso chamá-lo.
- Aceito a admoestação,
minha bela mestra, mas rogo-lhe o obséquio de consentir que termine esta
partida.
- Não, senhor.
- É uma mão de honra!
- Pior está essa!
- Ora, é boa! acudiu
Filipe; então quer você...
- Não tenho a
dizer-lhes o que quero, nem o que não quero; são horas de lição,
vamos.
- E é preciso obedecer,
concluiu Augusto, levantando-se.
Daí a pouco estava tudo
em via de regra; Augusto, sentado em uma banquinha aos pés de sua bela mestra,
escutava, com os olhos fitos no rosto dela, as explicações necessárias. Às
vezes D. Carolina não podia conservar imperturbável sua afetada gravidade e
então os sorrisos da bela mestra e do aprendiz graciosamente se trocavam; ela
se mostrava mais pacífica e ele menos atento do que haviam prometido, porque
era já pela quarta vez que a bela mestra recomeçava suas explicações e o
aprendiz cada vez a entendia menos.
Filipe apareceu na
sala, pronto para ir caçar, e convidou o seu amigo para com ele partilhar do
mesmo prazer. Todo o mundo adivinha que Augusto disse que não; ele poderia
responder que não queria caçar, porque estava pescando, mas contentou-se com
dizer:
- Minha bela mestra não
dá licença.
- Tome cuidado no modo
de pegar nessa agulha!... gritou ela com mau modo e sem se importar com Filipe.
- Está bem, disse este,
saindo; eu não os posso aturar. E depois acrescentou, sorrindo-se:
- Fique-se aí, Sr.
Hércules, aos pés da sua bela Onfale!
- Ouviu o que ele
disse? perguntou Augusto.
- Já lhe tenho repetido
três vezes que não é assim que se pega na agulha.
- Ora, minha senhora...
- Ora, minha
senhora!... ora, minha senhora! eu não sou sua senhora, sou sua mestra.
- Minha bela mestra!
- Digo-lhe que já me
vai faltando a paciência. O senhor não atenta no que faz!... já tem quatro
vezes rebentado a linha e é a décima segunda que lhe cai o dedal.
- Não se exaspere,
minha bela mestra, eu o vou apanhar e não cairá mais nunca.
Augusto curvou-se e
ficou quase de joelhos diante de D. Carolina; ora, o dedal estava bem junto dos
pés dela e o aprendiz, ao apanhá-lo, tocou, ninguém sabe se de propósito, com
seus dedos em um daqueles delicados pezinhos; esse contato fez mal; a menina
estremeceu toda. Augusto olhou-a admirado, os olhos de ambos se encontram e os
olhos de ambos tinham fogo. Um momento se passou; o sossego se restabeleceu.
- Já não posso mais!
exclamou a bela mestra; rebentou o senhor pela quinta vez a linha; não dá um
ponto que preste; não há outro remédio...
E, dizendo isto, lançou
uma das mãos à orelha do aprendiz, que de súbito deu um grito e acudiu com as
suas. Ora, essas mãos se encontraram, debateram-se, e nesse ensejo os dedos da
bela mestra foram docemente apertados pela mão do aprendiz. Novo fogo de
olhares! que aproveitável lição!...
- Menina, tenha
modos!... o Sr. Augusto não é criança, exclamou a Sra. D. Ana, que a dez passos
cosia, e que só podia ver a exterioridade do que se passava entre a bela mestra
e o aprendiz.
A lição se prolongou
até ao meio-dia e mais de mil vezes se repetiu a mesma cena do encontro das
mãos; D. Carolina não conseguiu puxar uma só vez a orelha do estudante e o
aprendiz não perdeu uma só ocasião de apertar os dedos da mestra. Augusto se
comprometeu a apresentar na primeira lição um nome marcado pela sua mão. Tudo
foi às mil maravilhas.
O resto do dia se
passou como se havia passado o seu princípio para Augusto e D. Carolina.
Eles não se chamaram
mais por seus nomes próprios; o amor lhes tinha ensinado outros; eram: “meu
aprendiz”, e “minha bela mestra”.
A madrugada seguinte
foi triste, porque presidiu às despedidas do aprendiz e sua bela mestra, mas
ainda foi bem doce, porque ambos meigamente se disseram:
Comentários
Postar um comentário